Maria Eduarda, sempre de salto alto e apressada, zuniu até o ponto de táxi na frente do Iguatemi. Mais prático ir ao centro de táxi/Uber, qualquer um sabe disso. O bom senso também manda não circular de carro importado na região. De mais a mais, não pretendia demorar. Tinha um objetivo bem específico: escolher fios-de-contas africanos para estudar a sua nova coleção.
Há anos, Eduarda não comprava ao vivo e a cores, quanto menos no centro de Porto Alegre. Encomendava tudo pela internet a fornecedores de São Paulo e do exterior. Ágil e eficiente, como ela gostava. Sabe-se lá por que, naquela tarde, uma nostalgia a guiava.
No trajeto, decidiu saltar na avenida Alberto Bins. Lembrou de colocar a gargantilha mole de ouro com o pingente de brilhante na bolsa Louis Vuitton – devia ter deixado no escritório, pensou –, que levou apertada ao encontro do corpo. Desceu a rua Pinto Bandeira, garimpando armarinhos e tecidos, e comprou tule preto e vermelho. Dobrou à esquerda na Voluntários da Pátria, tropeçando nas quinquilharias chinesas dos camelôs. Subiu e desceu a Senhor dos Passos, parando em cada portinha, mas só comprou algumas miçangas coloridas – nada lhe agradava.
Suando um pouco, tirou o blazer Armani. Seguiu pela Voluntários até o Largo Glênio Peres, já bastante desconfortável. O centro, pobre e fedido há mais de um século, a engolfava. Pessoas feias e ruidosas, enjeitadas como a última pétala mal-me-quer da flor. Olhou as filas dos ônibus – saíam uns após o outro, entulhados de rostos cansados e sonhos abafados. Atrás da parada, um caixote servia de balcão para as cocadas de uma negra gorda; aos seus pés dormia a criança suja. Uma mulher maltrapilha pediu esmola e Eduarda apertou o passo. Entrou, ofegante, no Mercado Público rente à banca 45. Enjoou-se com o cheiro do incenso e abreviou a escolha dos fios-de-contas.
Subiu acelerada pela Borges de Medeiros – no surto nostálgico, convidara o marido, com quem quase nem falava mais, para um encontro na Confeitaria Princesa. Ao cruzar a Rua da Praia com a Marechal Floriano, viu adolescentes se drogando. Chamou um Uber – precisava fugir dali – e ligou do celular: “Desculpa, Marcelo, vou pra casa”. Não pôde sequer buscar o carro no shopping. Invadiu o vasto apartamento na Bela Vista direto ao banho. Mergulhou na banheira de mármore Thassos e, submersa, chorou.
Eduarda vira tantos centros mundiais assim deteriorados nas suas viagens. Apoucava, como também as ruas antigas da sua cidade em miséria. Nunca previra reconhecer, um dia, o centro arruinado dentro dela mesma. Obcecada pela fama e pelo dinheiro, há mais de uma década dormia à base de tranquilizantes, um vício que já beirava o perigo. O casamento naufragara em algum lugar do passado que nem mais identificava. O projeto de filhos, abortado. Sob a fachada de empresária bem-sucedida, imunizara-se ao humano como quem fabrica anticorpos às doenças. E castrava impiedosamente seu desfile íntimo de sonhos.
Era a única responsável, agora sabia. Como todos, se descentrara.
Mas, sobrevivente em vigília, o amor juvenil ainda habitava o seu peito. Eduarda podia novamente calçar o velho tênis esquecido no armário. Pois voltaria ao centro. Caminharia pelas ruas até se encharcar de suor e verdade. Compraria telas, pincéis e tintas. Voltaria a pintar. E começaria por um quadro da parada do ônibus para a Redenção.
Foto da Capa: Belinda Cave / Pixabay
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