Sem nenhum motivo particular, ao menos que eu possa intuir conscientemente, me peguei pensando em um livro que foi esquecido por décadas até ser resgatado como profético após a ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos e da extrema-direita no plano internacional em vários países do mundo (dizem, não consigo lembrar de nenhum agora…): o romance Não Vai Acontecer Aqui, do autor norte-americano Sinclair Lewis.
Lewis nasceu no estado norte-americano de Minessotta, no ano de 1885, e começou a carreira como jornalista, viajando pelos Estados Unidos de redação em redação. Lançou-se como escritor após 1914, alternando indiscriminadamente trabalhos que ele mesmo considerava mais sérios com obras de ocasião nas quais apostava em um tipo de narrativa popularesca e ligeira destinada a vender rápido. Livros que, nas suas próprias palavras, “morreram antes mesmo da tinta secar”.
Foi apenas com seu sexto romance, Rua Principal, publicado em 1920, que ele encontrou uma voz literária, aclamação crítica e sucesso comercial. O livro, de toques autobiográficos, é uma sátira pesada à mentalidade tacanha e insular de uma cidade pequena americana. Estão ali já esboçados os principais elementos que marcariam a obra de Lewis dali em diante: o tom entre panfletário e satírico, o interesse pelas complexidades contraditórias da mentalidade do homem comum norte-americano e um pano de fundo que pretende casar o satírico com a análise social.
NOBEL
Na sequência, Lewis publicou dois romances considerados suas melhores obras: Babbit e Arrowsmith. É difícil imaginar isso hoje em dia, quando, mesmo nos Estados Unidos, seu nome pode ser facilmente confundido com o de outro escritor, Upton Sinclair, mas na década de 1920 Lewis foi o grande autor norte-americano, a tal ponto que em 1930 se tornou o primeiro escritor nascido nos Estados Unidos a receber o Prêmio Nobel de Literatura – uma escolha que não deixou de provocar celeuma na época, dada a irregularidade de sua obra.
À medida que o tempo avançava, contudo, Lewis foi perdendo prestígio, ultrapassado por nomes que não eram tão populares na mesma época, mas que o suplantariam no cânone, como Hemingway ou F. Scott Fitzgerald. Mesmo dentro da vertente da literatura norte-americana de análise social e tons políticos, enfocando os efeitos das crises do capitalismo sobre o homem comum, Lewis logo seria também ofuscado por um de seus contemporâneos dedicado aos mesmos temas, John Steinbeck. Esse declínio aconteceu ainda durante a vida de Lewis, cuja produção se tornou cada vez mais irregular devido às sequelas pesadas de seu alcoolismo. Quando ele morreu, em Roma, em 1951, Babbitt ainda era um livro bastante elogiado, mas suas duas dezenas de outros romances não eram mais lidos com o mesmo prestígio.
Um desses outros romances vem a ser Não Deve Acontecer Aqui, lançado em 1935 e que, imerso na atmosfera da ascensão gradual do fascismo e do nazismo, imagina os Estados Unidos dominados pela ascensão eleitoral de um político populista que implementa um regime fascista autoritário tão logo chega ao poder. Não sei muito bem por que, mas ando pensando muito nele, como disse. Esquecido por décadas, o livro foi resgatado pelo mercado editorial na esteira da eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos em 2016 – num movimento semelhante ao de várias outras distopias consideradas premonitórias dos efeitos da ascensão mundial da extrema-direita, como O Conto da Aia, de Margaret Atwood, ou 1984 de George Orwell.
O ROMANCE
Não vai acontecer aqui é ambientado a partir de 1936, quando está em curso a campanha eleitoral para a presidência dos Estados Unidos, na qual desponta como candidato surpresa o político conservador e populista Buzz Windrip, senador por um estado sulista que gradativamente vai galgando as pesquisas prometendo ao mesmo tempo um choque de ordem e um programa de erradicação da pobreza mais radical do que o New Deal de Roosevelt, então em seu primeiro mandato.
Nos Estados Unidos imaginados por Sinclair Lewis, o New Deal demora mais a dar resultados na recuperação da economia após o crash de 1929 do que na vida real, levando o presidente a perder a vaga na convenção democrata para a eleição de 1936. Roosevelt deixa o partido e forma uma nova agremiação chamada Partido Jeffersoniano, mas nem ele nem o candidato republicano conseguem impedir a irrefreável eleição de Windrip, um populista que acena com a recuperação de uma certa simplicidade à moda antiga ao mesmo tempo em que mistura promessas financeiras irrealizáveis com toques de antissemitismo e racismo velado. Windrip promete a recuperação da economia americana oferecendo cinco mil dólares por ano a cada pobre do país, dinheiro que seria retirado dos bancos que, segundo Windrip e o grande ideólogo por trás de sua campanha, o sinistro Lee Saranson, estão “nas mãos dos judeus.”
Ler o livro hoje nos põe em contato com uma certa complexidade bem-vinda no desenho ideológico da política americana como a conhecemos. Lewis é um candidato dos democratas, e sua matriz política se assemelha à dos republicanos mais conservadores de hoje, mostrando que as linhas entre ambos os partidos não eram tão nítidas naquela época. Sua campanha vende a ideia do candidato como um homem simples do campo, sem paciência e sem respeito pelo “papo furado dos almofadinhas dos grandes centros”, preferindo o voto da gente ordeira e religiosa que, em suas palavras, “constrói a verdadeira América”.
Ao mesmo tempo, como convém a uma sátira, Não Vai Acontecer Aqui constrói para Windrip um discurso confuso, um amálgama entre nacionalismo cristão, anti-intelectualismo fascista, xenofobia, além de um coquetel ideológico mesclando promessas populistas de inspiração marxista com um ferrenho anticomunismo.
O GOLPE
Antes mesmo de assumir, Windrip forma uma milícia particular com seus apoiadores mais entusiasmados, nomeada os “minutemen”, numa alusão aos batalhões revolucionários da guerra de independência dos Estados Unidos. Alçado ao poder, Windrip vai incorporando a suas tropas populares cada vez mais homens da guarda nacional e do próprio exército regular, formando uma milícia de imposição de suas medidas. Já nas primeiras semanas de governo, a recusa do Congresso em aprovar uma lei aumentando os poderes do presidente eleito leva à primeira movimentação do golpe. Windrip prende vários políticos e líderes de oposição com a desculpa de que os está mantendo em segurança do risco de uma revolta popular, dado que estão “trabalhando contra” o governo eleito. Enquanto isso, o novo presidente vai implantando medidas como o redesenho dos estados e distritos eleitorais para garantir hegemonia eleitoral futura. Para “erradicar a pobreza”, estabelece campos de trabalho para os desempregados, que recebem um dólar por dia e podem ter sua força de trabalho oferecida à iniciativa privada. O que leva, por consequência, a maioria das empresas a demitir seus funcionários com salário integral para contratar a mão de obra barata dos campos – que, por sua vez, recebem cada vez mais gente demitida. Com a queda do valor da moeda e uma ajuda do governo, bancos e empresas saldam suas dívidas pagando uma miséria aos trabalhadores com salários atrasados e economias perdidas no crash da bolsa. Como eu disse, ando pensando muito nesse livro, ainda que não consiga imaginar uma razão evidente para isso.
Apesar de sua onipresença na narrativa, Windrip não é o protagonista, esse papel cabe ao jornalista Doremus Jessup, editor de jornal em uma pequena comunidade do estado de Vermont. Exemplo do intelectual burguês conformista já entrando na meia idade, Jessup é o foco do romance, o ponto de vista inquieto pelo qual a narrativa descortina a gradual ascensão do fascista até a presidência. Assim como outros de seus interlocutores, Jessep alterna períodos de apreensão com uma confiança otimista na solidez e no excepcionalismo da democracia americana. “Não vai acontecer aqui”, o título do livro, é repetido várias vezes como mantra tanto por Jessup quanto por outros personagens, sejam os opositores preocupados sejam os apoiadores que minimizam alguns dos absurdos declarados pelo candidato em campanha.
Penso muito nesse livro e fico sem saber o motivo. Não é como se isso fosse acontecer de fato, sabe, um presidente que ameaça suplantar a democracia e depois se apressa a dizer “ops, era brinks”. Que bom que é só ficção.
É por meio do olhar de Jessup que são encenadas no cenário do romance as sucessivas manobras que transformam os Estados Unidos em um estado totalitário. Prisões, desaparecimentos, ocupações de espaços públicos, até o momento em que Jessup, cansado de se sentir acuado e com a tolerância esgotada para os abusos que presencia, escreve um demolidor editorial em seu jornal e passa a ser o alvo da implacável perseguição da seção local da milícia de Windrip, na qual se tornou uma figura importante um ex-empregado preguiçoso do próprio Jessup.
UMA DISTOPIA DIFERENTE
Um diferencial deste livro em relação a outras distopias que ganharam novo ímpeto de popularidade nos últimos anos é que Não Vai Acontecer aqui é uma obra menos focada no resultado, na distopia já estabelecida, e mais na enumeração minuciosa das etapas do processo em seus aspectos políticos, sociais e econômicos. Escrito em plena ascensão de Hitler e de Mussolini na Europa, Não Vai Acontecer Aqui não é tão presciente como parece. Ele é, na verdade, detalhista sobre os aspectos gerais normalmente repetitivos de um processo gradual de guinada ao autoritarismo: os passos que Buzz Windrip cumpre em direção ao poder e as etapas pelas quais seu governo passa até o estabelecimento de uma tirania; a ascensão do líder carismático e muitas vezes dissimulado; o apelo que seu discurso, seja sincero ou cínico, obtém junto a camadas desfavorecidas e, principalmente, ressentidas da população; a formação de uma milícia vinculada ao líder que congrega os mais agressivos e irracionais dentre esses ressentidos, vendo na oportunidade um modo de escapar de uma mediocridade que consideram injusta; a mentira como política oficial de governo tentando forjar uma realidade paralela diversa da real na qual os partidários possam acreditar.
Qualquer semelhança com a vida real, é claro, é mera coincidência.
Mas é o seguinte: apesar de algumas passagens engraçadas e de ironia aguda, Não vai acontecer aqui é um romance profundamente irregular. A condução da narrativa é truncada. Como costuma acontecer com mais frequência do que gostaríamos quando o assunto são histórias distópicas, o romance se perde no detalhismo com que constrói seu mundo e não consegue fazer a narrativa progredir de modo orgânico, com um resultado por vezes enfadonho. A edição nacional publicada pela Alfaguara faz algumas escolhas bastante… curiosas, para dizer o mínimo, como dar à filha jovem de Doremos um linguajar pontuado de gírias ultrapassadas, o que torna o livro ainda mais datado. Assim, eu realmente não consigo imaginar por que ando pensando tanto nele.
Talvez porque, falho como é, tenha alguns méritos na maneira como condensa os passos de ascensão do fascismo e os apresenta. Isso não o torna um romance melhor, apenas mais curioso. Ainda assim, ele deixa no ar uma advertência interessante. Se você não quer um fascista no comando do país, um dos primeiros passos inteligentes para isso talvez fosse não votar nele.
Não sei por que ando pensando tanto nisso ultimamente, não creio que haja uma razão específica.