Paternalidade Consciente, esse foi o tema de evento organizado pela Escola Superior da Advocacia-Geral da União na última semana. Estive entre os palestrantes junto com outros colegas advogados públicos federais, conversando sobre a paternidade consciente e o fortalecimento de vínculos emocionais.
Estou acostumado a conversar sobre a “paternalidade atípica”, ser pai de um autista em nossa sociedade. Ser autista ou pai/mãe de autista é cansativo demais, exige um esforço diário para realizar tarefas banais para as pessoas neurotípicas.
Porém, nesse período de enchentes, de cidades e casas destruídas, pessoas desabrigadas, a catástrofe climática foi tomando minha fala. Como disse a Luciane Slomka em um lindo texto aqui na SLER, “é preciso narrar”. Na medida em que a comoção passa, o choque vai se esvanecendo e vamos voltando a uma rotina, mesmo que imperfeita, precisamos falar e elaborar o que passamos e estamos passando.
Assim como a água barrenta invadindo as casas do Humaitá, os pensamentos sobre a calamidade que vivemos vão ocupando meus pensamentos. Como falar de paternidade e maternidade ignorando o que vivemos nas últimas semanas? Eu não poderia falar do assunto e esquecer as conversas que tive nessas últimas semanas por desabrigados e profissionais e voluntários que compartilharam suas histórias comigo em abrigos, centros de distribuição de donativos e outros locais.
Nos abrigos, conheci pais e mães incríveis que dividiram responsabilidades e se multiplicaram em muitos para dar conta das necessidades de seu filhos e filhas. Pais que não deixaram de estar ao lado de seus filhos mesmo diante de crises que profissionais da saúde ou policiais não souberam como agir. Ou como o pai de duas crianças autistas, que se definia como “sobrevivente do Dilúvio” e que viu a comunidade se unir para salvar o cão de apoio de seu filho. O pet foi resgatado da casa alagada mais de uma semana após a família ter sido resgatada em um barco. Crianças, pais e cachorro passam bem, embora seja difícil dar conta das perdas do passado e da incerteza sobre o futuro.
Se existem pais que estão nos abrigos junto com suas famílias, isso não apaga o fato que a maternidade atípica é caracterizada por um alto índice de abandono paterno. Não estou falando de separações ou divórcios, mas de homens que abandonam mulher e filhos e, quando muito, pagam alguma pensão. Abrigos para crianças autistas e suas famílias acolheram mães que estavam vagando pelas ruas com os filhos no colo, sem saber para onde ir. Não foi uma ou duas vezes que ouvi esses relatos.
As enchentes tiram pessoas e situações da invisibilidade costumeira. O interesse de governos e sociedade nas áreas atingidas pelos desastres climáticos revelam situações e histórias que são ignoradas durante “tempos normais”. Muitas mães de autistas tem seu dia a dia limitado à casa ou a instituições de saúde. Seu surgimento nos abrigos e nos jornais trazem uma verdade incômoda e que costuma ser ignorada.
Para a maioria das pessoas, o ambiente de abrigo é um ambiente inóspito, tudo é provisório. Mesmo em bons abrigos, há pessoas e objetos amontoados. A privacidade é um luxo distante. Ainda assim, conheci mães que se sentiam melhores nesses espaços que em suas casas. No abrigo, encontraram alimentação e proteção contra a violência doméstica. A desgraça lhes permitiu fugir da miséria e opressões diárias. Ainda que muitas tenham encontrado a violência do desamparo e mesmo da expulsão dos abrigos em que se encontravam dada a não aceitação das singularidades de seus filhos.
Daquelas mulheres que não passaram pela experiência do abandono, surgiram relatos, e não foram poucos, de mães sobrecarregadas que passaram a ter que administrar a casa, a família e as privações decorrentes das inundações sem contar com o apoio de seus maridos ou companheiros. As mesmas águas que não impediam o cuidado das mães eram tratadas como obstáculos intransponíveis pelos pais das crianças.
Mães cansadas e que, mesmo assim, conseguiram cuidar dos outros e também de sua família, lamentando a ausência dos pais de seus filhos e filhas e de seus companheiros. Simone de Beauvoir alertava que basta uma crise para que os direitos das mulheres sejam questionados. Isso não ocorre somente em crises de um país ou de uma sociedade. Havendo qualquer ruptura que abale nosso modo de vida, com a maior necessidade de cuidado, logo se retrocede ao modelo patriarcal em que o trabalho de cuidar é destinado unicamente à mulher.
As tragédias climáticas nos mostram que o trabalho do cuidado tem que ser compartilhado por todos, seja do setor público ou do privado, da sociedade civil mas, principalmente, independente do gênero do cuidador ou cuidadora, afinal, qualquer pessoa pode cuidar ou ser cuidada.
Foto da Capa: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
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