Para sonhar não basta só dormir. É preciso acordar um tanto para a realidade do nosso inconsciente. Sem esse despertar, quem contabiliza sono REM não necessariamente sonha, uma vez que, ao acordar perde o acesso a essa realidade dissonante, aquilo que Freud tão lindamente chamou de “a outra cena”.
Viver uma vida com pouco sonhar pode ser opressivo, porque é como se houvesse um suposto império da vida de vigília. Sonhar é o contato com nossa própria arte, um respiro, um intervalo ganhado. É como uma visita involuntária ao museu, uma ida ao cinema ou qualquer tipo de contato com uma ficção ou criação inédita. Às vezes, não gostamos do passeio forçado; sentimos angústia ou terror. Outras vezes, nos deixamos conduzir serenos, apreciando a viagem. De todos os modos, o sonho, ao promover um enigma, nos faz também um convite à inventividade. Mesmo quando repetitivos, os sonhos buscam a saída de nossos redemoinhos e labirintos cotidianos. E, se não sonhamos, ainda assim, nos espreitam certos equívocos e mal-entendidos promovidos por um inconsciente que nunca dorme. Estes lapsos vão sendo vividos como curiosas pegadinhas ou autoengano casual. Na verdade, muitas vezes é a dimensão onírica tentando fazer furo, tentando ensejar aberturas fortuitas de um adoecido estado vigilante.
Passar por cima disso é fazer valer uma obtusa ideia de infalibilidade. O inconsciente, quando faz emergir a sua voz, é tão protetivo quanto disruptivo no clamor de que sacudamos velhas formas esvaziadas.
Além disso, não observar a existência desses escapes oníricos nos faz desrespeitar quem vive mais perto deles, como pacientes com diagnóstico de esquizofrenia. Freud já sabia disso desde a sua Interpretação dos Sonhos, de 1900. Estas pessoas são a prova da falência do que chamei antes de império da vigília. Apesar dos esforços terapêuticos e psiquiátricos, cedo ou tarde, em maior ou menor grau, um estado de sonho perturbador pode advir e acabar com a festa. Pode ter sido algo desta ordem que aconteceu na tragédia de Novo Hamburgo. Se a saúde mental não estivesse nas últimas prioridades dos governos, aquelas quatro armas não estariam naquelas mãos. Ao menos não de forma legal.
Entretanto, tenho cá comigo outro sonho, não onírico, mas como anseio: o retorno da agenda do desarmamento. Dizem que não custa nada, então, bora sonhar!
Foto da Capa: Gerada por IA / Freepik
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