Mês passado, minha colega de Sler, Silvia Marcuzzo, escreveu uma coluna sobre a oficina de crônicas de Rubem Penz, que completa 15 anos em 2025. Mais especificamente a oficina Santa Sede, que acontece em mesas de bar de Porto Alegre. Ela contou do lançamento do livro e da “trajetória da iniciativa que já rendeu mais de 180 oficinas, a participação de uns 1.300 cronistas e cerca de nove mil crônicas escritas! O trabalho já gerou 48 livros publicados, sendo que 32 só pelo selo Santa Sede!”
Eu fiz uma oficina com Rubem Penz em 2008, ainda antes dele migrar para o bar, em um espaço que já nem existe mais, na Zona Sul. Guardo preciosas lembranças da nossa turma – uma oficina é mais do que uma prática de escrita, é convivência, troca e oportunidade. Rubem é um professor criativo, inquieto e perceptivo, é também músico e não economiza generosidade. Tenho os exercícios que ele nos passou e todas as crônicas arquivadas e compartilho com vocês “Alma Pixaim”. Ele nos deu várias palavras soltas, de uso pouco comum em nossa fala e escrita cotidiana, para elaborarmos uma crônica poética. Foi engraçado que poderia ter sido o exercício mais difícil da oficina, mas foi o mais fácil, a crônica veio quase pronta na minha mente e, quando a li em aula, essa foi justamente a pergunta que o Rubem me fez, parecia saber do ocorrido. Isso é uma coisa linda quando acontece, o que não é a regra, obviamente. Meu amigo Jacob Klintowitz, crítico de arte, diz que às vezes tem a impressão de que uma turma de duendes se junta a ele para escrever e assume o comando das teclas. Acredito piamente, a inspiração por vezes é como uma obra do além, mas é um resgate, quando o universo interior e exterior comungam. De qualquer forma, posso atestar a existência de duendes, pois já estive na presença de um, mas isso é história para outra hora. Vamos à crônica.
O exercício determinava usar as seguintes palavras: em re-significação:
bigorrilha (indivíduo desprezível), nevoeiro (névoa espessa), jazigo (sepultura), bambo (frouxo), momentâneo (instantâneo), artrite (inflamação articular), rajada (vento forte), glote (abertura da laringe), pixaim (carapinha), isca (chamariz), supracitado (mencionado acima), oleoso (que tem óleo), cobaia (espécime para uso experimental).
A minha crônica, Alma Pixaim:
Adquiri, nesses infinitos anos assassinados junto a ti, uma tal artrite de emoções, que nem mais lembro se lágrimas existem. Dutos lacrimais oleosos. Nem mesmo a enzima da cebola, transformadora de ácido em fator lacrimogênio, é capaz de bambolear qualquer líquido em minhas faces.
Teu coração empedrou-se num tempo em que só as águas conheciam o universo. Soterraste minha glote no primeiro olhar, para jamais precisares me ouvir. Tu te valeste de minha inocência bigorrilha para me prender no jazigo das certezas imutáveis da tua mente. E minhas lágrimas nunca encontraram os oceanos – esqueci de chorar desde as células.
Pois ouso dizer-te agora: Nunca entendeste que a inocência é o ouro no coração dos homens.
Mas como poderias?
Usaste desde sempre o pedestal do teu conhecimento à prova de qualquer rajada como isca. Submerso no nevoeiro da soberba, subjugaste a todos que te amaram, como cobaias. Desprezaste nossos gestos. Ridicularizaste nossos sentimentos.
A mim dedicaste especial atenção, não foi? Nunca imaginaste que chegaria o dia em que minha alma pixaim não mais se curvaria a tua cabeça dourada.
E neste dia começou o desague de tua consciência a bordo do Alzheimer. O óleo supracitado escorreu pelas minhas faces como fonte inesgotável de lágrimas perdidas. Imaginaste que eu me regozijaria ante tua derrocada, não é mesmo?
Pois preciso dizer-te agora: O ódio só consegue ser momentâneo, quando nasce do sofrimento sem fim.
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Foto da Capa: Pixabay