O presente texto expressa reflexões não conclusivas e relatos parciais de um processo que iniciou no ano 2020. É uma expectativa de que seja possível a todos entender o estágio que a educação para a cidadania se encontra em Porto Alegre, pela ação de movimentos coletivos. Que possa ser entendida sua função essencial e compreendidos os motivos da execução do Congresso Popular de Educação para Cidadania que, no momento, está em fase de planejamento de sua 3ª edição.
De várias formas, em diversos documentos de cunho acadêmico, jornalístico e literário não cansamos de ler/ouvir que a educação desempenha um papel fundamental na promoção da igualdade e da inclusão social. Afirma-se que é por meio dela que as oportunidades de desenvolvimento pessoal e profissional são oferecidas a todos os indivíduos, independentemente de sua origem, gênero, etnia ou condição social.
Pois bem, quem são os todos?
Existem estatísticas educacionais recentes que demonstram que o universo de quem tem a possibilidade de uma educação formal corresponde a apenas 70% dos sujeitos que têm direito ao acesso à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental. Evidenciam também que a evasão escolar no Ensino Médio e Superior aumenta, ano após ano. Que a oferta da Educação Profissional, desde a década de 30 (do século passado) oscila como uma onda: ora no topo, ora no ostracismo, tanto em âmbito público, quanto na iniciativa privada. São perdas irrecuperáveis em termos de estruturas físicas, materiais, culturais, impactando negativamente as áreas produtivas e a economia local.
Por outro lado, é importante considerar que, com a alternância de poder público nacional, estadual e municipal, propostas educacionais sofrem abruptas interrupções, sem uma avaliação crítica construtiva, onde a tomada de decisão não agrida tanto os cofres públicos, nem a formação cidadã dos sujeitos que estão matriculados em instituições educacionais. A formação de pessoas para ser proposta, assimilada e consolidada requer um tempo bem superior a quatro anos. Da mesma forma, a implementação de qualquer proposta envolve sempre aplicações de recursos financeiros públicos, decorrentes dos impostos pagos pela população. Entre essas realidades, passasse a ouvir a tradicional afirmativa: não se tem recursos para manter as estruturas atuais, nem se tem docentes atualizados para atuar em sala de aula. Então é lícito dizer que as oportunidades de desenvolvimento pessoal e profissional independem da origem dos estudantes, em especial aos que frequentam unidades de ensino público? Onde e quando, eles e os demais têm os meios necessários ao exercício da cidadania para utilização correta e consciente de seus direitos e deveres?
Pode-se afirmar que os primórdios da concepção de educação para cidadania foi construída, aplicada e vivenciada pelos antigos gregos (antes de Cristo) quando preconizavam uma educação fundamentada pelos princípios da ética e da política. Focava a formação de indivíduos com bom preparo físico, psicológico e cultural. O sistema de educação e formação ética da Grécia Antiga, incluía ginástica, gramática, retórica, música, matemática, geografia, história natural e filosofia, visando o desenvolvimento de cidadãos capazes de liderar, de serem liderados e de exercerem papel positivo no desenvolvimento da sociedade.
No Brasil, constata-se que desde a reforma de ensino da década de “50” e subsequentes, as cargas horárias e os componentes curriculares dos cursos regulares foram sofrendo alterações desastrosas. As aulas de latim foram extintas, sem discussão ou informação para os estudantes, e eu lá estava, como tal, em 1956 – hoje vemos como é tratada a língua pátria… A visão dos pilares das áreas agrícola, industrial, comercial e doméstica foram sendo esvaziados ao longo dos anos. Eram espaços onde se discutiam muito os cuidados com o meio ambiente e as evoluções e aproveitamento das aplicações da ciência e das inovações. Mais tarde, foi definido que aulas de filosofia, não mais! Carga horária de artes, de educação física, foram reduzidas, quase extintas. Atividades cívicas e esportivas, que ocorriam nas escolas no contra turno e em datas especiais naquela época, foram definhando e ficaram registradas apenas nas fotos preto e branco ou na nossa memória, intercambiadas entre os remanescentes daquele tempo.
A história nos apresenta o grego Platão (427-347 a.C.) como o primeiro pedagogo, não só por ter concebido um sistema educacional para o seu tempo mas, principalmente, por tê-lo integrado a uma dimensão ética e política. Essa unificação viabilizou a possibilidade dos sistemas de ensino se estenderem para sujeitos de diferentes classes sociais. As mulheres passaram a gozar dos mesmos benefícios educacionais dos homens. Entretanto, ao longo dos anos, as riquezas da educação formal foram minguando, permanecendo cada vez mais pobres e destinadas apenas a parte da população, excluída dos todos.
Com este preambulo, espero ter chamado a atenção sobre como mudanças radicais empobreceram a educação básica e profissionalizante de nossa cidade e estado, principalmente, restringindo-se predominantemente à “simples” informação e menos aos requisito da cidadania.
Logo cabe perguntar: Por que Educação popular para cidadania em Porto Alegre?
A partir da Constituição Cidadã de 1988, Porto Alegre vem construindo processos de ação inclusivos e colaborativos. Orçamento Participativo e Fórum Social Mundial, reconhecidos internacionalmente, surgiram dessa cultura participativa que continua instigando pessoas a pensarem mais além, sobre cidadania e educação. Buscando ainda mais com o cumprimento do Art. 205, que determina que a educação para a cidadania deve ser “promovida e incentivada com a colaboração da sociedade”.
Na medida em que se atribui à educação cidadã o conhecimento das instituições e dos processos políticos, a valorização do diálogo, da vida comunitária e a busca do bem comum, deposita-se nela o fortalecimento de fatores determinantes da cultura democrática. Com essa atribuição, passam a ser necessários outros processos que resgatem o que foi se perdendo ao longo dos tempos – o domínio de todas as classes sociais do significado e da prática de cidadania, para que a concepção de popular assuma sua plenitude.
Nascendo o Congresso Popular de Educação para a Cidadania
Homens e mulheres não nascem com o conhecimento das leis, dos direitos e dos deveres de um cidadão, o que pressupõe um longo processo de socialização e escolarização. Se esse processo não se efetiva, automaticamente, está sendo negado um dos direitos essenciais da cidadania. Reconhecendo a lacuna existente entre as vozes periféricas e as decisões políticas/privadas, duas coletividades, POA Inquieta e Ponta Cidadania, começaram a elaborar a proposta de um evento: o Congresso Popular de Educação para a Cidadania (CPEC). Pensada a partir do início de 2020, a proposta surge para horizontalizar a troca de experiências, colocando conhecimentos únicos e essenciais, peculiares de cada indivíduo, em um espaço de construção colaborativa. O CPEC reúne práticas e saberes voltados para a formação de cidadãos ativos e de uma sociedade inclusiva, democrática e sustentável, valorizando bem o termo Congresso, originário do latim, que significa andar junto.
Neste ambiente acolhedor e colaborativo, focado no aprendizado amplo e na qualificação da vida de toda comunidade, reconstroem-se as bases da cidadania popular.
Como metodologia, foi definida a principal ferramenta: as Rodas de Conversa. Espaços de fala e escuta horizontal para vozes periféricas, uma oportunidade para dar voz aos participantes, integrantes das comunidades, usualmente excluídas das instâncias decisórias da cidade. Foram usadas os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis), além de orientações gerais da ONU para a educação, na montagem da programação e no preparo dos responsáveis pelas diferentes atividades, buscando uma base sólida e embasada em conhecimentos universais. É importante ressaltar que os saberes locais passaram a ter uma maior presença nos temas apresentados. Os produtos resultantes dessa sistematização se desdobram em registros formais dos conteúdos em torno “da realidade que temos, que queremos e quais as propostas para sua concretização”. Tudo isso abraçado por produtos artísticos locais, entendendo que a geração de conhecimento não é apenas racional, ela passa também pelo corpo e pela emoção.
O Congresso aplica um método inovador e urgente, propondo um processo para mudar a percepção sobre cidadania em diferentes realidades urbanas periféricas. Ele acolhe suas contradições e provoca a coexistência e o diálogo horizontal entre comunidades, instituições e poderes. É realizado descentralizando as ações e a forma tradicional de ensino conhecedor X aprendiz, reunindo no mesmo espaço comum (sempre acontecendo dentro de uma escola pública) a diversidade real da cidade, com pessoas todas as idades, orientações e condições sociais. A programação centra-se nos temas: Sociedade, Meio Ambiente, Trabalho, Cultura e Arte.
A preparação do 3º Congresso Popular de Educação para a Cidadania está em andamento e já prevê uma maior participação das lideranças locais, a capacitação de mediadores e relatores, preferencialmente dos locais periféricos, encorajando a posterior realização desses indivíduos em novos projetos inseridos e partilhados em suas regiões. A ampliação e a constante busca de fortalecimento de um ambiente de aprendizado plural e democrático são as metas constantes que permeiam toda elaboração e idealização da proposta do evento.
A expectativa é contar com mais colaboradores no planejamento, execução e avaliação de resultados nos quatro eventos previstos, em duas comunidades: uma da zona norte e outra na zona sul da cidade.
Quem vem junto?
Rita Maria Silvia Carnevale é brasileira por opção, formada em Física, em 1966, educadora, pesquisadora, Mestre em Administração e sempre preferiu desafios. Integra o POA Inquieta e o COMCET- Conselho Municipal de Ciência e Tecnologia desde sua criação. Construiu sua rede de saberes pela convivência e troca, em especial com seus alunos da pré-escola à pós-graduação. Por convicção, segue gestora inquieta e resiliente.
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Foto da Capa: Congresso Popular de Educação para a Cidadania 2023 | André Furtado