Cada pessoa tem uma história singular que muitas vezes não é relatada nos serviços de saúde, falta um diálogo sincero, sem culpa e tabus para entendermos os contextos sociais de um processo de adoecimento.
Estou nesse espaço de reflexão para contar um pouco da minha história enquanto mulher negra, enfermeira e cientista social que escolheu trabalhar no Sistema Único de Saúde e colaborar para a promoção da saúde dos indivíduos.
Nas pesquisas que realizei, nos grupos comunitários em que atuo, a presença feminina sempre foi marcante. Lembrar com gratidão de cada uma das mulheres que participaram da minha construção profissional, e refletindo sobre o cuidado feminino, analisando a minha trajetória enquanto mulher negra que tem um posicionamento a favor do cuidado integral à saúde das mulheres, especialmente das mulheres negras.
Ao longo desses anos, ouvi muitas narrativas de usuárias do SUS, de alunas, de colegas de trabalho que potencializaram as minhas concepções de cuidado integral, pois a vida de muitas mulheres está marcada por desassistência, vergonha, opressão violência.
Busco no trabalho cotidiano, nas pesquisas, nos encontros com mulheres um reencontro com a humanização do cuidado, para que cada mulher reflita sobre o seu posicionamento na vida, seus direitos de existir e resistir, de ser cuidada e ser protagonista do seu cuidado.
Podemos falar também do início desse processo de opressão feminina, refletindo sobre os efeitos do colonialismo na corporeidade feminina. Mulheres, meninas, não são donas de seus corpos, pois as dinâmicas de gênero, sexualidade e raça através do fenômeno histórico imperialista, impõem a elas um ciclo de dominação e violência masculina, especialmente sobre o corpo feminino negro e indígena.
As desigualdades de gênero estão marcadas por outras desigualdades sociais; mulheres e homens estão expostos a padrões distintos de sofrimento, adoecimento e morte. Defendo a implementação de políticas públicas que desconstruam modelos culturais promotores de injustiças, cujos modelos de homem e mulher estão balizados por hierarquias que expressam violências estruturais sobre corpos femininos, especialmente os negros e pobres.
É na polaridade entre o tratar e o cuidar que caminham os modelos de atenção à saúde, geralmente com uma lógica curativa e menos preventiva. No plano operacional, é preciso criar espaços de reflexão para uma prática cuidadora.
Um cuidado que garanta que meninas, jovens e mulheres construam suas trajetórias de vida com autonomia. Que possam ter conhecimento sobre o funcionamento de seus corpos, o entendimento sobre os corpos de outros indivíduos, que recebam as orientações básicas para que possam fazer as melhores escolhas para o cuidado em saúde.
A escuta, o acolhimento, o plano do terapêutico, são essenciais para quem tem o poder de promover o cuidado e que esses dispositivos possam ser incorporados efetivamente à assistência, a partir de uma verdadeira comunicação entre indivíduos e profissionais.
É perceptível a biopolítica da invisibilidade, ou seja, a omissão dos serviços de saúde, que muitas vezes não são resolutivos na atenção ao cuidado dos corpos femininos negros, na prevenção da mortalidade infantil, na prevenção da violência doméstica, na orientação para o exercício e uma sexualidade segura, na atenção à saúde materna, na promoção o envelhecimento ativo.
Contextos de vulnerabilidade no universo feminino negro estão relacionados a fatores econômicos e sociais, como a escolaridade, renda; a alta transitoriedade associada ao difícil acesso à moradia; além dos fatores familiares e culturais. A dificuldade e falta de oportunidade em discutir as questões de gênero com os serviços de saúde e nas relações de domínio do parceiro para o exercício da sexualidade livre de riscos, é um dos fatores apontados em estudos científicos baseados em narrativas femininas, nos grupos de mulheres nas comunidades, nos consultórios dos profissionais de diversas áreas da saúde.
Uma reflexão é importante no atendimento às mulheres nos diversos espaços de saúde: precisamos de um diálogo sobre o feminino, que acolha, sensibilize e que proporcione uma comunicação efetiva para entender que as concepções sobre o corpo feminino são biológicas, culturais, sociais e afetivas. Compreender que a parceria sexual/ afetiva é construída a partir de referências machistas, como a unilateralidade feminina sobre o cuidado à saúde do casal, submissão sexual das mulheres e a inabilidade de negociação sobre a realização do sexo seguro.
Por outro lado, a liberdade de negociação e abertura, fundamental nas relações igualitárias (não somente de gênero), ainda são aspectos tensionadores das relações na atualidade. Se por um lado, ocorrem movimentos sociais crescentes por maior abertura e respeito aos direitos humanos – movimentos LGBTQIA+, feminista, negro, entre outros – ainda vivemos em uma sociedade com forte normatização da sexualidade. Temos como exemplo, os movimentos sanitaristas do século XIX que impuseram normas para disciplinar os indivíduos e os seus hábitos de vida, dentro de parâmetros de normalidade moralmente pré-estabelecidos.
A exclusão social de grupos populacionais promove a redução da capacidade de obter, processar e entender as informações de saúde e utilizar esses recursos para tomada de decisões mais apropriadas. Pessoas em situação de vulnerabilidade têm mais dificuldade em adotar hábitos que previnam as infecções sexualmente transmissíveis, o diabetes tipo 2, a hipertensão arterial sistêmica, a violência doméstica, os transtornos mentais, os danos associados ao racismo entre outros agravos e doenças.
Como feminista negra, entendo que a categoria mulher é uma variável histórica. A natureza feminina é socialmente construída, influenciada por vários marcadores sociais da diferença, ou seja, a intersecção entre as variáveis de raça, gênero, sexo, geração e classe. O feminismo negro é um espaço de ação concreta, tem como um dos objetivos a luta por políticas públicas que melhorem a qualidade de vida das mulheres negras, periféricas e pobres.
*Gisele Cristina Tertuliano é Enfermeira, Cientista Social e Doutora em Saúde Coletiva