Tenho procurado manter a lucidez e me distanciar dos absurdos que dizem e fazem as pessoas que não sabem, ou melhor, não admitem perder. Perder não é fácil mesmo! E entendo que é bem mais difícil para os dominados pela ignorância e pelo fanatismo. Mas daí a perturbar insanamente a vida do outro ultrapassa qualquer limite. Limite que as autoridades deste Brasil transtornado não fazem respeitar. Ou, ao silenciar, autorizam.
O que presenciei na estrada em uma viagem de Gramado para Porto Alegre seria cômico se não fosse trágico. Mulheres e homens histéricos na beira da estrada, enrolados na bandeira do Brasil, atrapalhando o trânsito, gritando, botando a língua, fazendo sinais obscenos para os carros que passavam e não saudavam o movimento com buzinas estridentes. Desvairados!
Fiquei chocada com o desrespeito, com as provocações vulgares e grosseiras, e com o silêncio de quem ocupa cargos nos governos e no parlamento.
Em outro momento, acompanhei histeria semelhante no Centro Histórico de Porto Alegre, perturbando e ofuscando a alegria que está no nome do nosso Porto. Vi de perto e me assustei com a superficialidade daqueles rostos que não mostravam nenhum sentimento. Só queriam tumultuar o entorno. E as autoridades seguiram silenciosas.
Então, mais uma vez busquei refúgio no “Papo de Segunda” do GNT, um espaço diverso em que os apresentadores falam de tudo com seriedade, leveza, humor, acolhimento e inteligência. A participação do ativista Rene Silva na noite de 14 de novembro foi de um aprendizado restaurador. O jovem ativista, que aos 11 anos fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão, começou dizendo que “quem sabe da favela é o favelado e favelado não é bandido”. Depois, contou que um dos objetivos do jornal é lutar contra a discriminação, “especialmente de uma autoridade, como o atual presidente do país, que não olha para a favela” e não visitou nenhuma durante sua estadia de quatro anos no governo. “Vivemos em uma sociedade classista. Etiquetamos os pobres por questões estruturais, como o patriarcado, o machismo e o preconceito”, pontuou Rene. Com um currículo admirável, ele é um dos cem negros mais influentes do mundo pelo trabalho que faz no Brasil, que ecoa por todos os cantos.
“Olhem com olhos de ver”
Esses habitantes das bordas das metrópoles, tão marginalizados e segregados, “têm um projeto de país que é de transformação, não de exclusão”, afirmou Rene. E fez uma convocação: “Olhem com olhos de ver”. Na favela tem sagacidade e tem inteligência, mas a população não é reconhecida e enfrenta cotidianamente hostilidade, racismo, desumanização das vidas e violência. O avanço da polícia é um exemplo. Chega atirando, como se todos os moradores, famílias, crianças, jovens, velhos fossem bandidos. Há uma autorização explícita e cruel, como se na favela as vidas valessem menos. Ou nada! Quando um governo não se manifesta em situações assim é porque ignora o Dia da Favela/04 de novembro* e o Dia Nacional da Consciência Negra/20 de novembro**. Ao desconhecer as fortes raízes do país que, por acaso, governa, desumaniza ainda mais os moradores e autoriza a violência, o que é lamentável.
Quem alimenta o preconceito torna o mundo mais estreito e medíocre
É fato que as manifestações oriundas do lado pobre das cidades são desprezadas. Mas é fato também que quem alimenta o preconceito deixa o mundo mais estreito, triste e medíocre. O Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, por exemplo, tem cerca de 180 mil habitantes. Alguém consegue olhar para este número e pensar em 180 mil bandidos? Se alguém consegue é porque descolou da realidade e entrou na psicose coletiva, como o filósofo e ensaísta Francisco Bosco analisou o movimento que pede golpe militar de forma histérica, sem conhecimento. Será que estas pessoas têm noção do que foi a ditadura no Brasil? Será que sabem quantas pessoas foram torturadas com sadismo? E quantas desapareceram? A história deste país precisa ser revista e contada com verdade.
E soma-se a tudo isso a explosão de casos de racismo no Rio Grande do Sul e o aumento das denúncias de preconceito em Porto Alegre. Em que século estamos? Em que mundo a gente vive?
“A vingança é no máximo compreensível, jamais admirável” – Emicida
Voltando ao Papo de Segunda, Fábio Porchat perguntou sobre o desejo de vingança que também nos ronda. E Emicida pontuou: “A vingança é no máximo compreensível, jamais admirável. A vingança tende a criar uma corrente de violência. É o olho por olho. A tentativa de buscar justiça é mais difícil, mas seria o melhor”. E quando a equipe do Papo fez uma homenagem a Gal Costa, mais uma vez Emicida foi preciso: “Uma das maiores vozes que a humanidade já produziu”.
*
*4 de novembro é o Dia da Favela. Data criada com o objetivo de chamar a atenção para a luta dos moradores dessas regiões, que enfrentam discriminação e invasões policiais violentas. A data é conhecida especialmente no Rio de Janeiro que, segundo o IBGE em 2019, é o quinto estado brasileiro com o maior número de aglomerados subnormais. SUBNORMAIS – A que se pensar muito sobre esta denominação. Enfim!
**20 de novembro é o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Foi criado em 1971 e formalizado nacionalmente em 2003 como uma efeméride no calendário escolar, até ser instituído como data comemorativa em 2011. Data respeitada e comemorada.
*
“Mundo, mundo, vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima
Não seria uma solução.
Mundo, mundo, vasto mundo
Mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo”
Salve o poeta Carlos Drummond de Andrade! Salve a arte que nos ilumina na treva!
*
Foto da Capa: Em busca de horizontes, de Tamar Matsafi.