Trago em mim uma fome ancestral que parece jamais ser saciada. Descendente de negros escravizados, sei existir uma cultura rica de meus antepassados, porém não a vejo disseminada nas escolas, no cinema, na literatura, na cozinha… Justamente neste local sagrado, pleno de ancestralidade, enche-se a boca para destacar a influência francesa, portuguesa, italiana, espanhola… E a africana? Em especial aqui no sul do Brasil, a importância e influência dos africanos na culinária é invisibilizada.
O fenômeno se repete e se perpetua em vários aspectos. De forma muito discreta, mas persistente, vai se tentando mudando essa história. Buscam-se oportunidades, espaços, para destacar pelo menos dois aspectos de extrema importância da influência africana na cozinha: o jeito de preparar e temperar os alimentos e a introdução de ingredientes na culinária brasileira. Talvez seja por essa percepção que não canso de exaltar e de me emocionar com a série High on The Hog.
Lotada de documentários e realities shows tendo a comida como tema, a Netflix lançou em 2021, a série High On The Hog, dividida em quatro episódios. O livro de mesmo nome, assinado pela pesquisadora Jessica B. Harris, é a base das reportagens realizadas pelo jornalista e chef Stephen Satterfield, que é o personagem condutor da série.
Jessica aparece no primeiro episódio e mostra algumas das principais lições de história sobre o Benin. De lá, Satterfield, o apresentador do programa, voou para Sea Islands, na Carolina do Sul, para se encontrar com o Chef Gullah. Em seguida, foi até a Filadélfia para ouvir histórias de alguns chefs afro-americanos lendários. E de lá, partiu partiu para o Texas, onde a temporada se encerra com as histórias dos Black Cowboys.
Os méritos da série são incontáveis. Dificilmente um documentário consegue tocar em pontos tão importantes para a história e reconhecimento de um povo, resgatando detalhes pouco difundidos sobre cultura e história. Em High on The Hog, Satterfield e o diretor Roger Ross Williams conseguem mais do que isto. Conseguem trazer emoção para além da informação. E esse é o grande acerto da primeira temporada.
Eu, como mulher negra, jornalista e idealizadora do evento Mesa de Cinema fui tomada por sentimentos atávicos desde as primeiras cenas. Imediatamente tratei de realizar uma edição especial do evento e a partir daí, tenho buscado uma mudança de foco da produção e do conteúdo do Mesa de Cinema.
Desde a estreia do evento, em janeiro de 2005, tenho vivido num universo paralelo.
Meus primeiros desejos de comer filmes nasceram na infância pautada pelo universo Disney. Era o amendoim do Dumbo, o macarrão com almôndegas da Dama e o Vagabundo ou o chá da Alice e a famigerada maçã da Branca de Neve, entre outros. Não éramos miseráveis, mas meus pais – com sete filhos para criar – não tinham muitas regalias para oferecer. Minha mãe caprichava na educação formal, complementada por leituras, programas educativos no rádio e na televisão, algumas idas ao teatro e muito cinema.
Ah, o cinema! Tínhamos a felicidade de ter um cinema de bairro, com matinés e sessões duplas! Tão mágico aquilo de passar horas no escurinho e depois sair para a rua com o sol chamando para a realidade. Era sempre com um sorriso rasgado que eu vivia aquela realidade propiciada pela fantasia. Mês a mês, ir ao cinema e brincar na pracinha era programação aguardada com ansiedade. E eu, que não gostava de comer, me deliciava com os diálogos, com os desenhos e com as comidas. Incrível como uma provável criança anoréxica tinha a gula ativada pela imaginação.
A menina sequinha cresceu, continuou fantasiando a vida e indo ao cinema. Passou a entender de gastronomia e a gostar de comer. Desde 2005, devorar filmes deixou de ser metáfora para mim e um grupo de seguidores do Mesa de Cinema. Periodicamente, nos reunimos (mesmo quando foi obrigatoriamente online), assistimos aos filmes, debatemos, mergulhamos em detalhes orientados por críticos e especialistas em cinema, gastronomia e temas correlatos à trama. O grand finale se dá com o jantar (ou almoço) com pratos extraídos da tela elaborados por chefs convidados.
Nesses anos todos desde a estreia desse evento, temos “comido filmes” de diferentes procedências. Menus da França, Espanha, Itália, Portugal, Japão, China, India, Grécia, Turquia, México, Argentina… No repertório, apenas um filme brasileiro, o excepcional Estômago. E de comida africana o que tivemos? Com muito esforço, pinçando pratos na tela, nos deliciamos com o sensível Yao – que se passa no Senegal –, com Alimento da Alma, que rola no sul dos Estados Unidos e com essa maravilha de documentário chamado High on The Hog.
Estou empenhada em buscar outros títulos. Gostaria de ter um contato de real influencia para criar algum vínculo com a Netflix que propiciasse não só a continuidade da série como uma abordagem sobre a culinária africana no Brasil. Mostrar nossos chefs e pesquisadores, mostrar nosso jeito de ser e cozinhar, nossas receitas, temperos, axé. Sair da invisibilidade por alguns minutos.
Alguém disponível para resgatar a já esquecida teoria dos seis graus da separação? Vamos lá Netflix, vamos mostrar como a África está presente na cozinha e na vida brasileira para além dos clichês.