Autistas sentem menos dor do que pessoas neurotípicas? Explicando o termo: autistas (e pessoas com TDAH e disléxicas, por exemplo) são consideradas neuroatípicas, ou seja, que o cérebro funciona diferente da maioria das demais pessoas. Há uma visão baseada no senso comum que os autistas sentem menos dor do que os outros.
Aqui em casa, sempre pensamos que os autistas sentem de forma diferente, pois o Amir, meu filho de 20 anos que é autista, não era de mostrar desconforto com dores. A gente dizia que, se ele chorou, é para correr, pois devia ser coisa séria. Mas, para além das minhas opiniões, existe a ciência, que se dedica a buscar respostas para essas questões.
Em artigo de 2013, “Pain Sensitivity and Observer Perception of Pain in Individuals with Autistic Spectrum Disorder”, era apontada a escassez de estudos sobre o tema e já se questionava “a crença amplamente aceita de que autistas são insensíveis à dor ou têm um alto limiar de dor” na literatura científica. No entanto, dizia, que a maioria dos estudos experimentais revisados indicavam que essa crença precisa ser contestada.
Essa contestação está na base de um amplo estudo conduzido pela Universidade de Tel Aviv, “Indiferença ou hipersensitividade” que foi a campo estudar a forma como autistas sentem a dor e chegou à conclusão oposta daquela crença anteriormente estabelecida: o estudo, que comparou reações à dor entre autistas e neurotípicos observou que autistas tem maior sensibilidade à dor.
Conforme declarou a Dra. Tami Bar-Shalita, uma das pesquisadoras:
“Os resultados do nosso estudo indicam que, na maioria dos casos, a sensibilidade à dor das pessoas com autismo é realmente maior do que a da maioria da população. Às vezes, os profissionais da saúde tratam pessoas autistas com a suposição de que sentem menos dor”, disse ela. “Isso não é apenas errado, mas nossa pesquisa mostra que médicos, enfermeiras e outros devem tratar pessoas autistas sabendo que sentem dor com mais intensidade e tomar medidas para reduzir ou controlar a dor”.
A médica ainda aponta que muitos profissionais mantêm essa ideia equivocada, pois pacientes autistas não se comunicam da mesma maneira que os demais pacientes e espera que a pesquisa encoraje a médicos e profissionais da saúde a buscar um maior entendimento de seus pacientes.
No fim das contas, se um autista não grita e chora de dor, não é porque vive a experiência da dor de forma diferente, mas porque se comunica de outro modo.
Não consigo deixar de pensar que a forma como vemos a dor do outro está baseada em julgamentos que não tem base na realidade, mas em crenças que trazemos. Pesquisadores, após analisarem os dados de cor e raça em prontuários médicos de 23.894 mulheres coletados entre 2011 e 2012, concluíram que as chances de uma mulher negra não receber analgesia no momento do parto chega a ser o dobro de uma branca, o que é atribuído aos estereótipos de que negras são mais fortes e resistentes à dor.
A reportagem da Agência Pública ouviu a pesquisadora Maria do Carmo Leal, da Fiocruz, que enfatiza que “isso é uma questão de racismo, achar que [mulheres negras] são um ser humano diferente, que não sentem dor”.
“Não é um problema só do setor de saúde. O racismo é uma questão muito forte na sociedade brasileira, há um maltrato generalizado a essas populações, principalmente de cor negra e indígenas. Mas os profissionais da saúde poderiam fazer coisas para melhorar a abordagem [durante o atendimento]”, conclui Maria do Carmo.
No entanto, as reações oficiais da classe médica passam por refutar a possibilidade de racismo e discriminação racial e de responsabilizar a desigualdade social e as diferenças no acesso à saúde pelas disparidades encontradas na pesquisa – que incluem também o menor acesso ao pré-natal e a maior peregrinação por maternidades até ser atendida.
Há um costume arraigado em nossa sociedade de invalidar o racismo atribuindo nossas mazelas somente à desigualdade social, como se fosse a explicação pela pobreza afastasse o racismo. As discriminações de raça, classe e gênero se cruzam, atuando em conjunto. Contudo, não há dinheiro ou fama no mundo que impeça um negro de sofrer racismo.
Nesse sentido, trazemos as palavras da brilhante jornalista Glória Maria que nos deixou há pouco. No programa Roda Vida, ela lembrou: “Nada blinda preto de racismo, nada. E ainda, para a mulher preta é pior ainda, porque nós somos mais discriminadas.”
Glória sabia o que dizia. Cabe a nós aprender com ela e sentir a dor do próximo como se fosse a nossa própria.