Chegou o Dia da Consciência Negra, data que será marcada pela primeira vez como um feriado nacional e é de fundamental importância em um País marcado de forma tão profunda pela desigualdade e pelo racismo. Esses marcadores impactam a vida de todos os negros e negras e pessoas com deficiências negras e autistas são impactadas de formas bastante diferenciadas e específicas.
João é um guri negro que está cursando as séries iniciais do ensino fundamental. Um dia, é cercado na escola por seis colegas que o agridem. A mãe, indignada, foi à escola onde suas reclamações são recebidas com desdém. A direção tentou minimizar o ocorrido, negando a existência de racismo ou de bullying, embora as agressões verbais e a discriminação já viessem ocorrendo há muito tempo.
João foi diagnosticado com TDAH. A escola que fez pouco caso da agressão sofrida tampouco se sensibilizou com essa descoberta. Ele não teve acesso a adaptações para que ele pudesse desenvolver seu potencial na escola. Tampouco foi elaborado um PEI, o Plano Escolar Individualizado, como seria seu direito, ainda que, aos 11 anos, ele não esteja plenamente alfabetizado. Para os alunos, João virou um alvo, já a escola o vê como um problema maior que seus agressores.
No último mês, mais uma camada foi acrescentada ao cotidiano de João. A equipe terapêutica que o acompanha concluiu que ele é autista. Um “TDAuH”, quando ambas as condições, TDAH e autismo, coexistem, tornando ainda mais evidente que o menino não vai se comportar ou aprender da mesma forma que a maioria de seus colegas e que ele deverá ter suas características respeitadas.
Nas últimas semanas, o interesse e desempenho de João estão em alta. A mãe credita os progressos à compreensão e esforço do novo professor da classe, que também é negro. A escola recomenda que o menino use o cordão de girassol para identificá-lo como autista. João certamente vê no colar mais um marcador sinalizando suas diferenças com os demais alunos. Com a esperteza adquirida por quem já cansou de ser discriminado e de apanhar, rejeita a exigência de modo desafiador: “Nem a pau”.
Mesmo que tenha de superar todas essas barreiras e obstáculos, João ainda é uma exceção à regra, por ter recebido o diagnóstico de autismo. O acesso ao diagnóstico é muito difícil para a população negra no Brasil. Como relata Fábio Sousa, ele mesmo negro e autista: “Muitas pessoas acreditam que o autismo é uma condição que só ocorre na população branca por existirem poucos autistas negros diagnosticados”. Como ele diz, uma pessoa negra autista ouve que é depressivo, esquizofrênico, bipolar, passando por toda a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) antes de receber o diagnóstico de autismo.
A invisibilidade de pessoas negras autistas também pode ser explicada pelo racismo estrutural, pois, como observa Fábio, “o diagnóstico ainda é caro e de difícil acesso para quem não pode pagar um convênio ou tratamento particular. Infelizmente, esse é o perfil da população negra”.
A desigualdade social e o acesso a serviços de saúde privados podem influenciar significativamente o diagnóstico de autismo e as terapias disponíveis. Um estudo recente com famílias de autistas no Distrito Federal revelou essa disparidade: 77,4% dos diagnósticos de autismo foram realizados na rede particular, e 67% das famílias utilizam planos de saúde para cobrir todos ou parte dos tratamentos. Esse é mais um reflexo do racismo em um País em que populações negras são excluídas dos serviços de saúde. Como aponta Marília Louvison, professora do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP: “As desigualdades nem sempre se apresentam nas diferenças de acesso à saúde, mas também na dificuldade em utilizar e no sofrimento produzido por esses serviços.”
Luciana Viegas, criadora do perfil “Uma mãe preta autista falando” no Instagram e da organização Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI), lembra que, mesmo após obter o diagnóstico, pessoas negras têm sua condição de autista seguidamente invalidada, dada sua invisibilidade, inclusive na sua representação na mídia: “Na televisão e nas redes sociais, as pessoas autistas são somente brancas. Assim, quando uma pessoa negra fala que é autista, tende a desconfiar e a questionar mais”. Outro aspecto que ela destaca é que, ao estar diante de uma pessoa negra autista, “os estereótipos capacitistas e racistas entram em conflito.” Enquanto os primeiros pregam que pessoa autista é inocente e boazinha, o racismo atribui a pessoas negras características negativas.
Quando perguntados sobre qual a maior preocupação de autistas ou pais de crianças negras autistas, Fabio e Luciana não titubearam em dizer: a violência policial. Como exemplifica Sousa, “uma criança branca tendo uma crise vai ter apoio. Teoricamente, terá gente preocupada em entender o que está acontecendo com ela. Uma criança negra vai ser lida como mal-educada e que precisa ser corrigida”, lamenta. Isso também chega aos adultos, conforme Viegas, o mesmo cenário vale para adultos. “O maior medo da pessoa branca é a discriminação. Da pessoa negra, é a violência policial. Se ela tiver uma crise no meio da rua, é mais provável que chamem a Polícia Militar do que uma ambulância”.
As dificuldades na comunicação oral e não verbal, tanto em entender o que está sendo comunicado como em expressar o que está acontecendo, potencializam esse quadro, principalmente quando abordagens policiais são realizadas de forma tensa, muitas vezes barulhentas, possivelmente com ordens baseadas somente na autoridade. Essas atitudes podem representar gatilhos para comportamentos atípicos de autistas que podem ser interpretados como desacato ou resistência às ordens policiais.
Esse pesadelo se materializou na última semana, quando uma jovem de 18 anos, Thainara Vitória Francisco Santos, morreu dentro de uma viatura da Polícia Militar de Minas Gerais ao tentar proteger seu irmão autista em uma abordagem policial em Governador Valadares (MG). Ela estava grávida de quatro meses e foi detida acusada de agredir os agentes. Um vídeo gravado por vizinhos mostra a ação policial, na qual Thainara e seu irmão autista de 15 anos foram imobilizados à força, mesmo com os moradores presentes alertando sobre o autismo do adolescente. “É só ele parar de resistir”, afirmou um dos policiais durante a abordagem que resultou na morte da irmã do adolescente autista, demonstrando o evidente despreparo para lidar com a situação e reafirmando todos os medos relatados por pessoas negras autistas e suas famílias.
A reflexão sobre o Dia da Consciência Negra destaca a urgência de combater a desigualdade e o racismo, especialmente ao incluir as pessoas com deficiência e autistas nesse debate. É importante reconhecer que pessoas negras autistas enfrentam desafios diferentes daqueles que autistas brancos vivenciam, além de situações exclusivas que não afetam outros grupos de pessoas negras. É fundamental abordar essas questões de forma interseccional, especialmente em um país onde “a pobreza tem cor” e o machismo impera. As histórias de vida de João, Fábio, Luciana, Thainara e seu irmão ilustram não apenas as dificuldades enfrentadas por negros e negras autistas, mas também o impacto devastador de um sistema que falha em reconhecer e acolher suas singularidades, levando à sua invisibilidade e desumanização.
As violências que sofreram em ambientes públicos, como escolas, serviços de saúde e em seus próprios bairros, evidenciam a insegurança que as pessoas negras enfrentam, e, de maneira particular, a vulnerabilidade das pessoas com deficiência e autistas negros. Essas histórias nos convocam a agir para que garotos como João possam se sentir seguros para ir à escola e jovens como o irmão de Thainara possam caminhar na rua sem sofrer violência daqueles que deveriam protegê-lo.
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Foto da Capa: Freepik