Não sei se ainda hoje é assim, mas na minha época escolar havia um momento de passagem: na quinta série, seria permitido escrever nos cadernos à caneta, e não só a lápis, como era até então.
Ali pelo final do quarto ano já começava um alvoroço entre os colegas: como seria escrever com tinta? Nossos cadernos não teriam mais aquela textura apagada do grafite, nossa escrita passaria a ter cores. Usaríamos a caneta azul? Ou a preta? E para sublinhar ou repetir no caderno aquelas figuras que estavam no quadro… usaríamos o tom vermelho?
Mas o vermelho não significava justamente o “erro”, não era a cor que as professoras usavam pra dizer que não tínhamos correspondido ao que era esperado de nós?
E o azul? Gremista como eu era, claro que eu queria muito escrever na cor azul. Por outro lado, a cor preta tinha um quê de elegância que, desde aquela época, já me chamava a atenção. Aliás, foi só depois de adulto que fui saber que a tinta preta é realmente sinal de sofisticação: as melhores canetas vêm com um cartucho desta cor por padrão.
Como minha letra sempre foi um tanto ilegível (bastante ilegível, na verdade), me apavorava a ideia de que meus rabiscos malformados seriam permanentes a partir da quinta série. A possibilidade de passar uma borracha sobre o grafite trazia consigo alguma coisa de liberdade, uma certa tranquilidade de tudo que era efêmero.
Imaginar que meus escritos seriam talhados em tinta não era nada apaziguador. Claro que já existiam aqueles corretivos líquidos como o Radex e o Errorex, mas aí eu me encontrava com outra neurose da minha de infância: eu sabia que meus erros e garranchos não seriam realmente apagados, mas escondidos por detrás de uma fina camada de falsa correção. Como quando não sabemos bem o que fazer com um objeto e o colocamos dentro de um gaveta, na vã esperança de que algum tipo de duende da arrumação vá dar fim para a nossa indecisão.
Vendo em restrospecto, acho que o que me deixava mais angustiado nesta passagem da quarta para a quinta série, do grafite para a tinta, era a percepção da permanência. Talvez aquela tenha sido a minha primeira relação com a certeza de que existem coisas que não podem ser apagadas, de que nem sempre se pode voltar a um estado anterior.
Era já um anúncio da vida adulta, ainda mais porque “escrever à caneta” era como que uma forma de amadurecimento na escola em que eu estudava: era um privilégio dos mais velhos, daqueles que, na minha cabeça infantil, já estariam mais preparados e não cometeriam tantos erros.
Bom, ledo engano. Gastei muito Radex dali por diante.
À medida que envelhecemos, vamos nos deparando com mais e mais situações que não podem ser apagadas, com escolhas cujas consequências restarão permanentemente.
Talvez seja por isso que falemos tanto da crise de meia-idade. É realmente aí pelos quarenta anos que já não podemos comer qualquer coisa sem esperar algum efeito, seja uma pequena azia no dia seguinte, seja uma alteração na glicose nos próximos exames de rotina, por exemplo. Beber muito depois de certa idade também cobra o seu preço pela manhã. E assim vai.
É pelos quarenta anos que nos conformamos que os duendes definitivamente não existem.
Por esta idade também nos vemos como herdeiros de nossa própria história, já estamos distanciados um bom tanto de algumas escolhas a ponto de sentirmos os seus efeitos: o curso escolhido na faculdade, ter conseguido ou não poupar algum dinheiro, ter aproveitado as festas da juventude, ter se arriscado pela vida, ter tido ou não filhos… Parece ser ali pela meia-idade que nós passamos a nos vermos endividados com o nosso passado de forma mais contundente.
Não à toa, é por essa época da vida em que surgem os maiores arrependimentos, mas também em que podemos agradecer por quem fomos. A tal de crise da meia-idade pode ser também uma possibilidade de leitura do passado e, a partir daí, a possibilidade de imaginarmos o futuro que queremos.
Há muitas formas de lidarmos com esta crise. Alguns compram carros esportivos para compensar a potência supostamente perdida. Outros largam tudo e vão viajar o mundo, na ânsia de recuperar as experiências não vividas. Já outros acabam se identificando tanto com aquilo que perderam que entram em um período depressivo, saudosos de um passado idealizado que nunca tiveram.
Mas há também formas de fazer desta crise algo pelo menos um tanto interessante. Quando nos havemos com a dimensão irrecuperável da vida, também nos autorizamos a tomar decisões que façam mais sentido com o que somos ou queremos ser. É o período da construção das coisas permanentes. Escolhemos ou reafirmamos a escolha pelos parceiros amorosos, pela carreira profissional, pela cidade em que vivemos.
Toda decisão banal passa a ter um peso maior. Na reforma do apartamento, por exemplo, já temos que estar em diálogo com os nossos eus do futuro, com os idosos que, com sorte, seremos. Passa a fazer mais sentido que não queiramos adiar aquela viagem ou aquela troca de emprego.
É aí pelos quarenta anos que o mundo coloca seu rosto mais perto de nós e vemos refletida em seus olhos a nossa própria imagem nos chamando para a responsabilidade de escrevermos a nossa história à caneta, e não mais a lápis.
Pelo menos a cor da tinta ainda resta como uma escolha.
Foto da Capa: Andrea Piacquadio / Pexels