1. Há, a meu ver, uma grande diferença entre um “texto” como o Corão e aquele que chamamos de “Bíblia” (Novo e Velho Testamento): o primeiro, pela sua unidade formal e linguística e sequência temática, provavelmente foi escrito por uma única pessoa e num tempo relativamente curto; o segundo não: vários estilos, temas, formas, vocabulário… escrito por muitas pessoas e num espaço de tempo extremamente dilatado. Assim, o Corão está menos sujeito a uma hermenêutica diversificada, enquanto a Bíblia se oferece à infindável variedade exegética. Ambos, no entanto, podem ser lidos como peças literárias, contando uma história sobre nós mesmos, nossa origem, como devemos nos comportar, o que devemos esperar, qual a natureza de Deus…
2. É verdade que a literatura pode produzir personagens que entram em nossas vidas como se fossem reais: podemos visitar a “casa” de Sherlock Holmes em Baker Street ou procurar, na nossa Rua Nova (Recife), a casa onde viveu a “emparedada” de Carneiro Vilela. Ocorre que o contrário também é possível: um personagem real ganha dimensão literária e mítica. Não duvido, por exemplo, da existência histórica do Cristo e há referências de sua passagem além das citadas nos evangelhos canônicos. Mas Jesus foi além de sua existência real e ganhou uma dimensão metafórica (literária), na imaginação e na fé de quem crê. E esta mensagem diz respeito aos humilhados e ofendidos de todos os tempos e lugares: no final dos anos 60, o dramaturgo pernambucano Isaac Gondim escreveu e dirigiu uma peça chamada “Emanuel, Deus conosco”, em que o Cristo era representado por um ator negro, provocando uma forte reação de nossa “tradicional família cristã”. Gondim queria dizer que Cristo é a melhor representação produzida pela cultura ocidental sobre o sofrimento do homem comum, a denúncia de sua miséria e o anúncio de sua possível redenção. Cristo é uma metáfora de todos os oprimidos: os negros, os pobres, os torturados por ditaduras, os índios, as crianças de rua e, sim, os gays!
3. Há alguns anos, o grupo Porta dos Fundos foi duramente criticado com o filme que trata Jesus como gay: na verdade, não é nada mais do que uma representação metafórica e atualizada do mesmo Homem que no século primeiro colocou um problema até hoje não resolvido, e por isso foi supliciado e morto: Ele se perguntou se poderíamos viver juntos como “Comunidade Humana” e nos alertou que, para fazê-lo, precisávamos nos deixar interpelar incondicionalmente pelo rosto do Outro, o Diferente. ELE jamais aceitaria como resposta a censura ou a violência!
4. A morte do Papa Francisco, ocorrida na madrugada do dia em que lavro esse artigo, deveria nos lembrar disso: Francisco foi, para mim – que não sou religioso – não apenas o Chefe de Estado mais corajoso, ético e sensível à condição do homem comum desde a criação do Papado. E seu pontificado veio exatamente no momento em que o Mundo passa por transformações políticas, econômicas e institucionais que ameaçam não apenas a vida na Terra, mas aquilo que conhecíamos como “Homem”. Francisco é a definitiva encarnação do Sermão da Montanha: a mais vigorosa oração de crença no destino do Homem. Com ele, literalmente, o Verbo se fez Carne!
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