O “Caso Cuca” nos mostra, de forma clara, a importância da representatividade, um fator essencial para entender por que o ex-jogador pediu demissão do cargo de técnico do Corinthians, um dos clubes mais populares do país, antes de completar uma semana de trabalho.
Cuca, apelido de Alexi Stival, foi jogador de futebol e é um técnico que atuou nos principais clubes brasileiros. Em 1987, ele e outros 3 jogadores do Grêmio foram acusados de violência sexual contra uma menina de 13 anos em Berna, na Suíça, quando o clube excursionava pela Europa.
A cobertura da imprensa na época, em especial a gaúcha, foi de inocentar os acusados e culpabilizar a vítima. O cronista Paulo Santana chegou a dizer que “os jogadores do Grêmio não assimilaram a mudança do fuso horário”, especulando um novo efeito do jet leg: a violência sexual. Disse que esperava que a justiça suíça encarasse o “deslize” dos atletas como a “travessura irresponsável” que foi, não vendo qualquer ilicitude no ato.
Já outro famoso cronista esportivo da província, Wianey Carlet, questionou o “bom gosto” dos “doces devassos”, antecipando o “não te estupro porque você não merece” dito solenemente anos depois disso por você sabe quem.
O período em que os atletas estiveram presos foi acompanhado pela imprensa local com um veredito próprio: a menina era considerada culpada enquanto os jogadores estavam sendo injustiçados. Raul Régis de Freitas Lima, dirigente gremista, insinuou que foi uma “trama armada, não sei com que objetivo” e se mostrou “revoltado com a truculência dos policiais e a prepotência das autoridades”. Cuca, de modo semelhante, declarou que os fatos ocorridos em Berna como uma “armação” seguida de uma “patriotada da justiça suíça”.
Raul Régis declarou que “escolheram os jogadores mais jovens para o grupo” para essa “trama”. Esse é outro ponto interessante, o cartola apontava a juventude dos atletas e Cuca já disse que “era um guri” e que a vítima “não tinha carinha de menina, não.” Uma curiosa inversão, já que estamos falando de uma guria de 13 anos e de profissionais do futebol, todos com mais de 20 anos à época.
A justiça suíça não comprou a versão dos atletas e condenou-os por coação e ato sexual contra pessoa vulnerável a 15 meses de prisão em 1989, exceto o jogador Fernando, que foi condenado apenas por coação contra a vítima, a 3 meses de prisão.
As autoridades suíças informaram ter encontrado sêmen do treinador no corpo da vítima do crime, desautorizando a versão ainda sustentada por ele que não tocou ou foi reconhecido por ela.
Essa condenação não cumprida sempre esteve presente, de alguma forma, na trajetória profissional dos envolvidos, o que não os impediu de seguir uma carreira esportiva dentro e fora dos gramados. O mundo do futebol teve postura semelhante à adotada pela imprensa.
O que mudou de 1987 para cá que fez com o que o jogador recebido por um aeroporto lotado como herói fosse o treinador que pediu demissão poucos dias após ser contratado? A representatividade é um elemento chave nesse processo.
Falando de forma resumida, a representatividade se dá pela presença de pessoas de grupos minoritários e vulnerabilizados nos espaços de tomada de decisões políticas e econômicas e nos espaços culturais que passam a ser vistos, então, como representantes desses grupos.
A falta de representatividade é notada pela ausência de mulheres, pessoas negras e indígenas, pessoas com deficiência ou LGBTQIAP+ na mídia, nas direções de grandes empresas, além do governo, administração pública, partidos políticos, Legislativo e Judiciário ou sua sub-representação, a sua presença nesses espaços em percentuais inferiores a sua proporção na população em geral.
Nos últimos anos, as mulheres invadiram o futebol dentro e fora dos gramados.
A presença das mulheres comentando esportes tornou mais difícil evitar o debate, como disse o jornalista André Rizek, “a presença de mulheres no debate esportivo tornou essa discussão mais forte, essa discussão essencial”. Assim, a condenação de Cuca, Fernando, Henrique e Eduardo não poderia ser mais ignorada. Nem seria mais possível passar a mão na cabeça dos agressores sexuais e restaurar o pacto masculino de silenciamento das vítimas e minimização de crimes cometidos. As coberturas da condenação do jogador Robinho, assim como da prisão do jogador Daniel Alves, ambos por crimes ligados à violência sexual, já mostraram isso.
Outra presença fundamental foi o empoderamento da torcida feminina, cada vez mais presente nos estádios e associando-se aos grandes clubes do futebol brasileiro. É gente demais para ser ignorada.
Para somar-se a tudo isso, houve a adesão do time de futebol feminino, atual campeão brasileiro e que vem tendo bastante destaque na imprensa. As atletas cobraram coerência da direção do clube que havia lançado a campanha “Corinthians respeita as mina”. Como diz a loja do Timão: a camiseta “simboliza o combate ao assédio e violência contra a mulher dentro e fora dos estádios.”
Aí temos outro ponto que serve de lições para clubes e outras entidades que se posicionam em causas sociais e políticas: é preciso ter coerência entre o que é pregado e o que é praticado. Caso contrário, estamos diante do chamado “diversity washing”, em que a instituição garante mídia gratuita, melhora sua reputação e valor de mercado, mas isso não se traduz em ações realmente inclusivas. Se quer respeitar “as mina” tem que ouvi-las primeiro.
Ainda mais em um clube que tem se posicionado de forma constante em causas sociais e reivindica um legado popular e democrático, como o Corinthians.
As marcas de uma violência como a que foi cometido contra a garota suíça ficam por toda vida. Uma agressão que continua e é aumentada quando ocorre a negação dos fatos e a culpabilização da vítima. E muitas mulheres, vítimas de violência sexual, sabem disso. E, por essa razão, não aceitam que qualquer medida se torne aceitável desde que o time alcance vitórias e conquiste títulos.
Representatividade importa, sim.
Foto da Capa: Rodrigo Coca / SC Corinthians Pta