Escrever um livro sobre a esquerda, olhando diretamente nos olhos do Partido dos Trabalhadores, me faz voltar para os anos oitenta, em que fiz o curso de história na universidade, onde então eu era um jovem militante de esquerda e podia dizer que me sentia em casa. Essa é a mesma questão formulada por Barbara Cassin (foto da capa) em Nostalgia (Quina, 2024), e que me serve aqui de mote para minhas reflexões finais sobre o futuro da esquerda. É que, como diz a autora, olhando a esquerda atual, mais cresce a sensação de que não estou em casa. Eu olho a esquerda de hoje na capital gaúcha e pouco vejo da esquerda de meu passado. Como foi que perdemos essa eleição para Sebastião Melo? Eu olho a veneração com que o PDT vela seu mais antigo membro, Alceu Collares, e bate uma inveja: ele manteve-se com os seus ideais de sua geração, manteve o seu jeito de ser que era praticamente o mesmo em seus últimos anos de vida e não cedeu aos imperativos das redes sociais, mesmo que seu próprio partido tenha naufragado no abismo dos interesses de direita. Por que ser autêntico, fiel a suas origens, é tão difícil para a esquerda?
Olho ao meu redor e observo os militantes de minha geração. A maioria acabou como professor da rede de ensino público, levando seus ideais para dentro da sala de aula na esperança de formar uma nova geração. Outros simplesmente foram devorados pelo mercado, transformaram-se em bancários ou vendedores de imóveis. Outros, como eu, muitos foram militar em outras esferas, como a Câmara de Vereadores, onde por quase trinta anos construí projetos de ação educativa crítica. Aposentado, continuo pensando na esquerda, aquela dos saudosos anos 80, mas prefiro, pela idade, a posição de ensaísta, como outros que militam sendo redatores de sites e blogs on-line de esquerda. Há também aqueles que saíram das entranhas do Partido de Trabalhadores para fundar outros, como o PSOL, que é como você pegar o seu carro antigo e dar aquele brilho que o faz parecer um outro carro e faz você brilhar o olho. Você sabe que, no fundo, é o mesmo carro, as mesmas ideias, que a aparência apenas esconde mais do antigo Gol com motor de Passat. Nele, você se lembra de toda a energia da esquerda dos anos 80, mas você sabe, ser de um partido é como um casamento, não dá para desfazer depois, só com muito sacrifício. Você ainda é de esquerda. Você ainda é petista.
O anúncio de uma obra
Elegi o tema da “Nostalgia” que publico aqui para ser o tema de encerramento destes artigos sobre o futuro da esquerda que se transformaram em meu livro “O futuro da esquerda está no passado” (disponível aqui): se eu defendo isto, de que o futuro da esquerda está no passado, isso significa que defendo que a esquerda retorne a agenda política de quando de seu lançamento, apenas orientada pelo melhor diagnóstico do pensamento marxista recente. Isso significa também que eu, como muitos,tenho um sentimento de nostalgia pela esquerda. É diferente do sentimento de nostalgia de Cassin pela Córsega, porque eu, ao contrário dela, não estou de volta a um partido; é o partido que partiu, deixou de ser o que era, eu não vivo o que o partido e seus integrantes vivem hoje, as discussões dos diretórios, o debate das ruas. Sou de esquerda por um ideal adquirido nos anos 80 que visava a transformação da sociedade: “Como posso sentir tanta falta – por estar longe há muito tempo, sempre tempo demais – desse lugar?” (Cassin, p. 15).
Você é de esquerda, mesmo que a própria não seja idêntica ao que era quando você começou a militar. É uma espécie de desenraizamento às avessas, pois não é você que se desenraizou, saiu, mas foi o partido. Ser apegado a um partido que não é mais o que era, que é outra coisa, é estranho. Como Cassin, que sonha com a nostalgia porque é apegada a Córsega, eu sonho com a nostalgia porque sou apegado aos princípios do PT. “A nostalgia não é simplesmente a saudade da casa e o retorno para a casa. Esse sentimento doce que nos invade é, como a origem, uma ficção escolhida que não cessa de dar os indícios para que a tomemos como ela é: uma ficção adorável, humana, um fato de cultura” (p.13).
A esquerda acolhe com hospitalidade aqueles que lutam pelo combate a desigualdade. Hospités de esquerda, diria Cassin, o que significa que você está em casa, está entre os seus. Tenho origem humilde e por isso sou grato a todos aqueles que combatem a desigualdade, “pois há reciprocidade no ar” (p.14). Se você sente que é vítima da desigualdade, você se sente acolhido pela esquerda. A realidade de um partido de esquerda é muito precisa, está em sua história, em seu Estatuto, em sua Carta de Princípios. Sabemos o que é esquerda por experiência de vida como sabemos que a terra é redonda porque, ao entardecer, o sol se curva. Sabemos que há um limite entre esquerda e direita que não pode ser ultrapassado. Como a ilha de Cassin, na esquerda, é como uma ilha, “há uma costa, limite entre um dentro e o grande lado de fora, e que a ilha é finita. Uma ilha é, por excelência, uma entidade, uma identidade, um algo, com um contorno, eidos, ela emerge como uma ideia” (p.15).
Como a esquerda se coloca no mundo?
O tempo se passou e as influências do mundo capitalista modificaram o modo da esquerda de ser e de se colocar no mundo. Grupos de pressão fizeram a esquerda modificar seus ideais para sobreviver, a conquista do poder, por ser política, é algo que se negocia. Mas até onde se pode ir na negociação de princípios para a conquista do poder? Como uma ilha, a esquerda é um ponto de vista sobre o mundo, um partido que está imerso no cosmo político e que sobre as cabeças de suas lideranças ficam princípios, pressões, confabulações. Quando conheci pela primeira vez os ideais de esquerda, tive a experiência de que fala Cassin em Baudelaire, de “ordem e beleza”. Mas a cada eleição, “a cada desvio do caminho, a cada curva, a cada passo, o mundo se recompõe e se reorganiza” (p.15). Não foi assim com minha geração de esquerda, vendo a cada eleição as pequenas mudanças que o PT permitiu e que levaram a um novo espanto entre a ideologia de fundação e a ideologia de contexto, renovando seus princípios, deixando aos poucos de ser o que era? Às vezes caminhando até para trás? Um partido é como uma ilha que, como diz Cassin, “é por excelência, um lugar”.
Qual o lugar da esquerda nas lutas sociais do século XXI? Ela é um lugar singular que convida a luta contra a desigualdade. Ela nos convida para partir deste sistema, a crítica capitalista, para adentrar em outro melhor, o socialista. Ela nos magnetiza porque faz o tempo passar como um ciclo, uma odisseia, que ora é dominada pela esquerda, ora pela direita. Quando atravessamos o governo de Jair Bolsonaro, nós, os da esquerda, sonhamos em voltar ao período em que Lula era presidente. Tínhamos nostalgia do PT no poder. Porque nostalgia é exatamente isso, vem de “nostos”, que significa retorno, e “algos”, que significa dor, sofrimento, “a nostalgia é a ‘dor do retorno’: ao mesmo tempo o sofrimento que nos domina quando estamos longe e as penas que sofremos para voltar” (p.16). Não foi assim com a eleição de Lula, a batalha voto a voto, a luta pela conscientização que começava nas famílias divididas pelas redes de WhatsApp e, nesse sentido, não foi também uma epopeia como a que descreve a autora ao falar da Odisseia e da Ilíada da cultura grega? Como fez Homero, com o retorno de Ulisses, cantando as mil artimanhas para o seu retorno, nas páginas deste meu “o futuro da esquerda está no passado”, vislumbro as mil artimanhas para a esquerda voltar ao poder e as razões que entendemos por que não está conseguindo – ao menos em Porto Alegre.
O nascimento da noção de nostagia
Cassin afirma que a palavra nostalgia, entretanto, não é grega e sequer é encontrada na Odisseia. É uma palavra suíça alemã que nomeia uma doença apontada no século XVII. Inventada em 1678 pelo médico Jean-Jacques Harder para expressar a saudade de casa, aparece também na tese que Jean Hofer produziu em 1688 para graduar-se em medicina na universidade da Basiléia e que descreve a história de jovens que estavam definhando e que foram curados ao voltar para casa. Cassin quer aprofundar o problema do seu significante porque, se nostalgia tem uma origem médica, isso é muito significativo para a autora. Para Cassin, nostalgia é uma palavra mestiça, que quase teve suas origens apagadas pela expressão philopatridomania, a loucura do amor pela pátria proposta por Hardes, ou pela phothopatridalgia, a dor do desejo, paixão pela pátria forjada por Zwinger, “mas foi nostos, “o retorno”, que triunfou.
Por isso, entendo que cultivar a nostalgia de esquerda é cultivar o desejo de que o PT volte a ser o que era no passado, retorne a sua origem. Se você, como eu, sente desejo de que a esquerda volte a ser o que era no passado, você é um nostálgico. Cassin consulta o dicionário Chantraine onde nostos deriva de neomai, que significa “voltar, retornar” e depende de uma raiz cujo sentido ativo seria “salvar”. Não é exatamente isso que desejamos quando dizemos que gostaríamos de ver o PT voltar ao que era em suas origens, no sentido de que só assim podemos salvar a esquerda? Anostros, por outro lado, diz Cassim, significa exatamente o contrário, “sem retorno, que não dá frutos”. Não é nesse caminho que imaginamos a esquerda de Porto Alegre? Escolheu um caminho sem retorno com a indicação de Maria do Rosário; escolheu um método sem retorno com a guerra das tendências em seu interior: esse caminho é sem retorno porque “não dá frutos”, impede a esquerda de retornar ao poder em Porto Alegre.
Cassin diz que “Nestor é o nome para “aquele que felizmente retorna, que felizmente traz de volta seu exército” e, em grego moderno, nostimos tem o sentido de “saboroso, gentil”. O sentido provável da raiz é “retorno feliz, salvação”, expressões que perfeitamente qualquer militante de esquerda sentiu quando Lula venceu as eleições e substituiu Jair Bolsonaro no poder. Para a esquerda, felizmente Lula voltou ao poder, trazendo seu exército de esquerda com Haddad a frente em seu cavalo branco. Foi uma vitória saborosa para a esquerda nacional, diferente da local que não sentiu esse sabor, mas outro, o da derrota. O PT local sofre como Ulisses da Odisseia, com seu retorno constantemente adiado pela direita. Quando a esquerda que exerceu o poder por dezesseis anos enfim voltará para Porto Alegre? A nostalgia de ser esquerda no Brasil é estar dividido entre o enraizamento e o desenraizamento.
A pátria da esquerda
A pátria da esquerda é diversa da pátria de que fala Cassin na Odisseia. A razão é que não se trata de um país para retornar, mas de um ideal compartilhado para buscar vencer as eleições. Por isso, no lugar de Eneias da epopeia, podemos encontrar figuras como José Mujica, o agricultor e político uruguaio de esquerda que governou o Uruguai de 2010 a 2015. Como uma geração de esquerda no Brasil, ele também enfrentou a ditadura militar e foi além, integrou os Tupamaros, grupo armado, quer dizer, enfrentou a ditadura, foi preso e passou quinze anos na prisão. Quando assumiu o governo, fez da erradicação da miséria seu cavalo de batalha. Fez um governo progressista e de esquerda. Isso é ser de esquerda e a nostalgia de Lula é ser frequentemente visto com ele para reforçar o que ele mesmo é. Cassin diz que o sentido provável da raiz nostimos é retorno feliz, salvação, o que expressa exatamente o sentimento da esquerda pela eleição de Lula; no germânico, Cassin encontra o sentido de estar curado, o que também faz sentido se imaginarmos metaforicamente que,se Jair Bolsonaro foi a doença, Lula é a cura.
Na nostalgia de Cassin, a Odisseia de Ulisses e seu retorno adiado equivalem metaforicamente a trajetória do PT municipal. Há uma passagem também rica na narrativa da história por Cassin onde Eneias, sem pátria, foge de Troia em chamas com seu pai Anquises e seus deuses-lares sobre os ombros. “Ele erra de lugar em lugar, até que Juno, que o persegue com seu ódio, consente em deixá-lo fundar o que se tornará Roma, mas com uma condição: que ele esqueça o grego e fale, diz Virgílio, “através de uma só boca” (p. 18). A ideia de que a nostalgia impõe uma língua não é similar a necessidade da esquerda de unificar seu discurso? As tendências, com suas inúmeras perspectivas, para mais perto ou mais longe das ideias liberais, não é o equivalente do mito bíblico da Torre de Babel, a construção citada no livro Gênesis que explica a diversidade linguística da humanidade? Ela não é equivalente metafórico das diversas línguas que existem dentro da própria esquerda? É só olhar o processo que levou a indicação de Maria do Rosário em Porto Alegre. Não existiam lá diversas vozes, diversas línguas que discutiam a validade ou não de sua indicação e que funcionam como as línguas diversas da Torre, agora destinadas a dispersar a agenda petista? Se a ambição dos homens em construir uma torre que o alcançasse exigiu a intervenção divina que resultou na dispersão da humanidade sobre a terra, a ambição da esquerda deveria ser exatamente o contrário, a de reunir as diversas tendências em um único programa social. A única forma que vejo para isso é apelar a nostalgia, o desejo de voltar a condição de um passado considerado perfeito.
Em que sentido pode-se dizer que a nostalgia é um sentimento da esquerda? Parafraseando Kundera, citado por Cassin, “esquerdista é aquele que tem nostalgia da esquerda”. A comparação que Cassin faz com Ulisses, da Odisseia, pode ser um parâmetro para avaliar a esquerda, afinal, não é também uma odisseia o esforço da esquerda para voltar ao poder? Cassin se pergunta se Ulisses, o único sobrevivente que deixou a Ilha sem conseguir voltar para casa, “se ele vai enfim conhecer ou não o dia do retorno”, “nostimon emar” (p. 23) em grego. A esquerda sente-se como em uma Odisseia, sente a falta do retorno ao poder como Ulisses sente falta do retorno a sua casa. Cassin lembra que a abertura do poema acontece com uma assembleia dos deuses que põe em relação os homens e os deuses, o que, segundo a autora, revela a “maravilha do paganismo”. A maravilha do paganismo tem seu equivalente na maravilha da democracia, que a eleição sacramenta por colocar em relação cidadãos e seus políticos. Diz Cassin que “A recíproca, do lado dos homens, é descrita assim por René Char: “Nós não invejamos os deuses, não os servimos, não os tememos, mas, arriscando nossas vidas, atestamos sua existência múltipla e nos emocionamos por fazer parte de sua criação aventureira quando cessa a lembrança deles” (p.24). Essa emoção frente a assembleia de homens e deuses é da mesma natureza da democracia. A eleição é também esta festa pagã que sacramenta o compartilhamento de emoções, mas pode-se também arriscar a vida nela, já que todos lembramos o quanto Jair Bolsonaro desprezou as vidas de brasileiros com seu negacionismo e defesa irracional da cloroquina.
O Kosmos da esquerda
A harmonia de ordem e beleza preconizada por Cassin no mito é o próprio Kosmos, que é também definido como uma ideia sonhadora do mundo. O ideal de esquerda é dessa natureza, é esse sonho de uma sociedade de iguais, sem a desigualdade econômica provocada pelas políticas neoliberais. O governo petista se torna essa espécie de Olimpo; os ministros são essa espécie de reunião de deuses onde vemos seus lamentos ou avaliações sobre o tipo de política a tomar. Eles lamentam a não eleição de Maria do Rosário, como Atena lamenta por Ulisses, pois ela não conseguiu chegar ao poder, como Ulisses não conseguiu voltar para sua casa. A esquerda não tem o poder de Zeus para decretar o retorno de Ulisses, não tem o poder para fazer eleita Rosário. Diz Cassin: “A relação entre o novo e o antigo, a maneira como o novo se torna antigo e o impulso, o hábito, em suma, o tempo como linha e como ciclo, são uma das chaves da nostalgia” (p.25). Por isso a não eleição foi dolorosa para a esquerda local, reforçou a saudade do período em que o PT esteve no governo e, como Calipso, que vai até Ulisses, a beira do mar, e encontra “com os olhos ainda banhados em lágrimas, desperdiçando sua doce vida a chorar pelo retorno”, (p.26) ilustra exatamente a única reação que pode a militância fazer: ela também chorou, provocada não pela derrota, mas pelo sentimento de nostalgia, de algo que poderia ter voltado a acontecer na cidade, mas não aconteceu.
Preferiríamos que a cidade elegesse Maria do Rosário, pois isso daria vazão ao nosso sentimento de nostalgia, faria a esquerda voltar para sua casa que é o governo da cidade, mesmo que fosse, para mais uma vez, enfrentar a morte como Ulisses, que as forças neoliberais em constante presença no legislativo representariam. O peso do desejo de retorno de Ulisses, como o do retorno da esquerda ao poder, é que ela também, como o personagem, não pede o direito a velhice, e talvez, por essa razão, como em sua primeira gestão de 16 anos, também possa voltar para mais uma vez morrer.
Quando imagino que a esquerda possa voltar a ser o que era nos anos 80, de certa forma, como diz Cassin, “estamos sempre nos decepcionando, porque não é o lugar de sua juventude que ele quer reencontrar, mas sua própria juventude” (p.27). Cassin frisa, entretanto, que no mito, Ulisses prova o contrário ao desejar Penélope com a idade que ela tem “não a juventude eterna, mas o tempo que passa”. Sentimos nostalgia da esquerda no poder porque lembramos que atravessamos um tempo bom; a nostalgia é de um lugar ao longo de um tempo. Quando observamos Lula como presidente em sua velhice, e acompanhamos atentamente o que lhe acontece, o que vemos é que a esquerda de minha geração reconhece também que tem em comum com ele que pode envelhecer. Eu acompanho uma geração de artistas e me entristeci com a morte de Ney Latorraca, mas também de filósofos e agora reconheço, de “políticos cujo destino comum é “viver entre os seus o resto da vida”, como cita Cassim, o suspiro do poeta francês Joaquim Du Bellay (1522-1560).
A esquerda é a nossa ilha e ela é, para a esquerda, da mesma natureza para a qual quer voltar Ulisses. “Nós a reconhecemos, creio, porque nela somos reconhecidos, isto é, porque nela temos nossa identidade”, diz Cassin da Odisseia. Se a história do PT for a de uma viagem, toda a esquerda está “sob a égide da busca da identidade” (p. 30), que caminha junta com a nostalgia. Para Cassin, “a identidade é claramente uma questão também de significante” (idem). Por isso, a guerra simbólica se tornou um imperativo, é ali que se trata, para a esquerda, da construção de sua identidade. A esquerda precisa reconhecer a importância dos significantes, como Ulisses fez na célebre passagem do Ciclope, com o nome que Ulisses lhe lança: “Eu me chamo Outis” (ninguém). O que para Cassin é uma atitude de astúcia, a mesma que falta a esquerda em seu combate com a direita. Por isso, ela perdeu o combate com aqueles que sabem usar a metáfora como arma de combate.
A identidade como definição
Na passagem de Ítaca, quando a identidade de Ulisses é cantada pelas sereias e onde ele é amarrado a base de um mastro, o seu “eu fico ali plantado no chão” são palavras que emergem somente quando somos reconhecidos, conceito que retoma a filosofia que pergunta se você sabe quem você é? A esquerda sabe? Para a esquerda saber quem ela é, ela precisa, como Ulisses, plantar os pés no chão. Por isso, dediquei em meu livro duas seções dedicadas aos Núcleos de Base, publicadas em Sler. Como diz Benedito Tadeu Cézar, sabemos que precisamos voltar a elas, mas não sabemos o que elas dizem por diversas razões. Ele as enumera em seu artigo Volta às bases, com que base? (disponível aqui)
“A realidade socioeconômica mudou e nós ainda não entendemos plenamente as transformações em curso. Não existe mais o operariado e a classe média dos anos de 1980/1990/2000, que compuseram a base social do PT. As transformações no mundo da produção e do sistema financeiro e a incorporação de alta tecnologia, a internet e as redes sociais, o recuo da igreja católica progressista, com sua teologia da libertação, e o avanço das igrejas neopentecostais, com sua teologia da prosperidade (e que alguns já chamam de teologia do domínio), e também o avanço dos setores mais conservadores na igreja católica, e ainda o crescimento do trabalho informal, com a uberização e o empreendedorismo, criaram um mundo novo que nós não entendemos plenamente”.
Cassin diz que o poema Odisseia nos incentiva a seguir “o caminho do é”, ali onde ser, pensar e falar se interpenetram” (p. 31). É o caminho também de recriar uma língua de esquerda, que a levará a retomar sua identidade para si mesmo e para seus militantes e simpatizantes. Voltar ao poder como um Ulisses que volta para Ítaca somente pode ser feito quando se retoma a pergunta visceral pelo quem se é, sua natureza de combate à desigualdade, e o que fará para ser reconhecido exatamente como Telêmaco que reconhece Ulisses: “Há pouco tu eras apenas um velho coberto de trapos e agora tu és semelhante aos deuses, senhores dos campos do céu” (p.32).
Cassin enumera vários atores que reconhecem Ulisses em seu retorno. Seu filho Telêmaco, seu cão Argos, sua nutriz e até Penélope, sua esposa, que é o reconhecimento que realmente conta. O enraizamento, diz Cassin, se mede através de sinais que só a esposa reconhece, que revelam o quanto Ulisses está ali, plantado junto ao chão. Esse enraizamento original é a metáfora do enraizamento político. Somente os militantes, aqueles que foram “casados” com o partido, devotaram-lhe fidelidade, sabem reconhecer quando a esquerda volta a ser o que era. Na história de Ulisses, o enraizamento é provado pela cena final do leito nupcial cravado no tronco da árvore. ”É assim que sabemos que estamos em casa”, diz. Na esquerda, é o plano de governo, é nele que estão também os sinais (sêmata) “sinais de reconhecimento, eles também “bem plantados” (empeda)” (p. 35). Cassin diz que Penélope precisava de uma operação de inteligência estratégica para reconhecer o marido que não cessa de fazê-la esperar e passar por outro, da mesma forma o partido faz o militante esperar por sua chegada ao poder, faz-se passar por outro partido, outra esquerda, negando-se seu nome. Pois toda vez que a esquerda cedeu de seu programa para conquistar votos à direita, ela deixou de ser o que era; fez como Ulisses, mentiu para si e para Penélope. Por todo esse tempo, da mesma forma, a militância aguardou, nostálgica, o seu retorno, como se aguardasse a Ulisses.
“Natureza e cultura como uma única coisa que nos faz reconhecer que estamos em casa” (p.36). A imagem do enraizamento da história de Ulisses constatada por Cassin serve para fortalecer os valores da esquerda. Ela mostra que todos, de alguma forma, precisamos da nostalgia do passado para fazer o novo, que é também, diz Cassim, um ato de amor com reciprocidade: se Ulisses, o que se perdeu, é capaz de voltar para casa, é pelo amor de Penélope. Seria bom que a esquerda pensasse nesses termos nostálgicos de um retorno a um passado, pois é ele que nós, militantes, amamos no partido.
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