Nossa percepção diz que começa a se formar uma cultura PANC – não aquela punk da década de 70 na Vila Madalena, em São Paulo, ou dos Ramones e Sex Pistols pelo mundo afora, mas, sim, a das PLANTAS ALIMENTÍCIAS NÃO CONVENCIONAIS. Em princípio, podemos explicar que as PANC são plantas que podemos comer, mas que quase não consumíamos nos últimos tempos, seja porque não estão disponíveis nos grandes mercados, seja por abandono de hábitos ou mesmo desconhecimento.
Já foram carinhosamente chamadas de matinhos por nossos antepassados; de plantas espontâneas, silvestres, alternativas, regionais, entre diversas outras terminologias. Em geral, são fáceis de cuidar, resistentes e muito nutritivas. Há também diversas espécies utilizadas com fins ornamentais, possibilitando a formação de jardins comestíveis.
PANC e ancestralidade
Assim, a cultura PANC dialoga com o resgate de costumes dos nossos antepassados e busca uma reaproximação com a ancestralidade. Algo como aconteceu e acontece no mundo da cerveja artesanal e dos bares que fazem sua própria cerveja, assim como das cafeterias que torram seu próprio café, da arquitetura moderna inspirada na bioconstrução africana e por aí vai…
Entendemos que o mundo das PANC combina com os povos originários, com a sabedoria que se perpetua entre gerações e nos movimentos, do quilombismo ao indigenismo, mas também com as mulheres agricultoras (rurais e urbanas) – guardiãs de sementes crioulas e da diversidade genética, através da agroecologia, agrofloresta, agricultura familiar e urbana.
Como a gente não quer somente pão, associamos as PANC à cultura e ao meio ambiente, à reutilização de materiais, à reciclagem, ao estímulo do consumo de livros usados e à grafitagem. Queremos contribuir para reanimar o espaço urbano que estamos inseridos por meio de feiras locais que dialoguem com estes conceitos, dos mercados de antiguidades aos brechós. Desejamos apreciar música boa – a todo momento – e ao vivo sempre que possível, assim como em discos de vinis e vitrolas. Dessa forma, o movimento PANC está associado à diversidade, ao veganismo, ao vegetarianismo e suas derivações, assim como aos amigues LGBTQIAPN+.
Sobretudo combina com saúde, prevenção, autocuidado, plantas medicinais e diversas terapias, farmácia viva na cozinha e práticas integrativas complementares (PICs). Aliás, a defesa de PICs e PANC associadas já nos rendeu momentos de deboche vindos de gestores públicos que ainda não compreenderam estas relações.
Saúde das pessoas e Saúde da Terra
Aqui entra o necessário entendimento de não dissociarmos mais a saúde das pessoas da saúde da Terra, algo que está expresso no conceito de saúde planetária. Essa concepção é relativamente recente, tendo mais nitidez a partir de 2015. Basicamente a ideia relaciona a saúde da civilização humana ao estado dos sistemas naturais dos quais ela depende. Então, associar as PANC e suas múltiplas relações, por meio da alimentação, com este tema geral, é estabelecer uma conexão direta entre o micro e o macro, o local e o global.
O termo PANC já está no plural e tem muitas relações com o Rio Grande do Sul. Desde as nutricionistas gaúchas Irany Arteche – com suas famosas receitas – e Bruna Crioula, que aborda assuntos como alimentação afro-ancestral, racismo alimentar e plantas alimentícias não colonizadas; até o livro mais conhecido das PANC dos agrônomos Valdely Kinupp e Harri Lorenzi, com várias pesquisas realizadas aqui, em solo gaúcho, sob a orientação da nossa grande mestra da Universidade Federal do RS (UFRGS), Ingrid Barros.
O conceito depende da forma como dialogamos com as plantas. Por exemplo, alguns alimentos comuns em determinado lugar são as PANC de outros locais. É o caso do açaí na região amazônica, do ora-pro-nóbis em Minas Gerais, da bertalha no Rio de Janeiro e do comuníssimo butiá no RS, provavelmente a nossa mais famosa PANC.
Hoje, 90% do alimento mundial vem de aproximadamente 20 tipos de plantas – embora estime-se que até 30 mil espécies vegetais tenham partes comestíveis. Nesta diversidade toda há superalimentos, com grande quantidade de nutrientes – como minerais, vitaminas e antioxidantes, que poderiam ajudar a reduzir a fome no mundo e ainda são desprezados. (Valdely Kinupp).
Obviamente, é importante ressaltar que não podemos sair por aí ingerindo todo tipo de vegetal que encontrarmos! É preciso ter discernimento e conhecimento a respeito, bem como respeito às plantas e segurança no que se consome.
Imperialismo Agroalimentar
Contudo, é evidente que estamos vivendo uma espécie de imperialismo agroalimentar. Vejamos: o Brasil abriga entre 15% a 20% das espécies vegetais do planeta. Mesmo assim, mantém um cardápio limitado e majoritariamente estrangeiro. Nosso mercado está focado em soja (China), milho (México), cana-de-açúcar (Nova Guiné), café (Etiópia), laranja (China), arroz (Filipinas) e batata (Andes). São raras as plantas que fizeram caminho inverso como a mandioca, o cacau e o amendoim.
Neste embalo, em outubro de 2021, com a esperança de acelerar nossa saída definitiva da pandemia, abrimos o Café com PANC, dentro de uma pequena praça na Rua Riachuelo, 990. Nos desafiamos a criar um negócio novo, partindo do zero, sem referências anteriores e que misturasse pedagogia alimentar (do cultivo, ao preparo e ao consumo de PANC) com diversidade. Desenvolvendo receitas inéditas, buscamos incluir e acolher todos aqueles que têm algum tipo de restrição alimentar, bem como estimular a redução do consumo de carne. Em resumo, um desafio complexo, principalmente por ser um espaço de resistência às grandes corporações da indústria alimentícia e da propaganda generalizada, além de ser um local amigo dos animais.
Para isso, preferimos trabalhar com fornecedoras locais e valorizamos a melhoria contínua, buscando a sustentabilidade do negócio e sua viabilização econômica e financeira, bem como a minimização dos resíduos e a formação de uma rede inédita de produtos e fornecedores.
Assim, apoiamos e trabalhamos muito com as hortas coletivas e comunitárias do Fórum de Agricultura Urbana e Periurbana de Porto Alegre (FAUPOA), lideradas pela Horta Comunitária da Lomba do Pinheiro – um verdadeiro centro de referência nesta área, espaço verde que foi inspiração fundamental para o conceito e abertura do nosso negócio. Além das hortas, nossa lista de fornecedores é majoritariamente composta por feirantes orgânicos, numa relação direta com produtores de Porto Alegre e da agricultura familiar gaúcha, buscando sempre alimentos saudáveis, produtos distintos e inovadores.
Foi esse diferencial que promoveu a ampliação da empresa, mesmo muito jovem, para uma nova sede na mesma praça. Uma loja antiga, com pé direito alto, espaços internos distintos e fartas vitrines, localizada no condomínio Marília (construído na década de 40), abraçou nossa expansão. Nesse lugar clássico do centro histórico seguimos dialogando com a praça e ampliamos a visibilidade para a Rua Riachuelo. Incrementamos o empório e ampliamos nosso cardápio, servindo diferentes pratos no almoço – todos com PANC e elaborados por nós mesmos.
Essa característica nos trouxe novos clientes e, com eles, a oportunidade de atendermos no café do histórico Theatro São Pedro, instituição simbólica da arte e da cultura gaúcha. Ali, nosso cardápio também busca ser diversificado e inclusivo, considerando a tradição das pessoas que frequentam aquele espaço. Uma nova oportunidade de negócio, com grande visibilidade e diversas possibilidades para nossa pedagogia alimentar.
Por fim, ressaltamos a importância essencial da Praça da Família Imigrante para o nosso negócio, bem como para a comunidade e comércio vizinho. É um pequeno recanto cercado, que fecha apenas à noite e aos domingos. Adotado, desde 1996, pelo Instituto Burnett de Comunicação Verbal, é uma praça muito simbólica, entre as primeiras adotadas na cidade. Conhecida pela comunidade como um “oásis”, é um misto de jardim e horta em meio aos prédios do Centro Histórico. Seu paisagismo é espontâneo e a organização do espaço é mantida coletivamente, ao longo de décadas, sob o aval do poder público.
O Café com PANC está integrado ao Espaço Ecopolis, atual zelador da praça, bem como ao projeto municipal que estabelece “prefeituras de praças”. Recentemente, o projeto de lei complementar (PLC) 014/2023, de autoria do Executivo Municipal, tinha como objetivo a venda de quase 1/3 desse patrimônio natural. Seriam vendidos 110 metros quadrados, na região mais histórica da nossa capital, por R$ 150 mil.
Juntamente com a comunidade local, organizamos uma grande mobilização, que teve adesão extremamente rápida, espontânea e surpreendente, contagiada por uma energia intensa e positiva. As pessoas chegaram trazendo cartazes e um apoio caloroso a nossa causa. Com os desdobramentos e repercussões deste ato, foi questão de dias para a Prefeitura Municipal pedir o arquivamento da proposta. Mas este debate não está encerrado, pois passado o ano legislativo, a mesma proposição pode ser desarquivada a qualquer momento.
Seguiremos no mesmo espaço, tempo e espírito. Reivindicando primeiramente o diálogo com os envolvidos e a transparência do processo; defendendo as PANC associadas à cultura, ao meio ambiente e à saúde planetária, assim como a revitalização do centro histórico combinada com a preservação dos espaços verdes na cidade.
*Antônio Elisandro de Oliveira (agrônomo voluntário na Praça da Família Imigrante), membro do POA Inquieto Orgânicos;
Márcia Peripolli (bióloga e prefeita da praça), parceira e proprietária do Café com PANC.
*Artigo originalmente publicado aqui em 10 de janeiro de 2024