Não é difícil constatar o desgaste da palavra “cultura” em nossa época mais recente, ao ponto de que expressões como “cultura da violência” ou do “estupro” (supondo que, agora, violência e estupro fazem parte de um campo “cultural”!) tornaram-se corriqueiras inclusive naquelas instituições que teriam por finalidade preservar um certo tipo de patrimônio e de tradição simbólica, como uma espécie de reserva de experiências humanas capaz de nos oferecer aquele “corrimão” de que nos falava Tocqueville para nos conduzir nesta aventura aberta que é o futuro. Tornado um termo polissêmico e aberto, e tendo perdido completamente aquela entonação erudita que guardou até, pelo menos, o surgimento da chamada “cultura de massas”, este desgaste semântico precisa ser examinado, no mínimo para sabermos o que perdemos (e o que ganhamos) nesta transição conceitual. É o que tentarei, muito rapidamente, examinar a seguir.
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Não custa lembrar aquilo que Freud observou em seu longo ensaio, “Mal-Estar na Civilização”, a respeito deste assunto: ao fabricarmos um mundo especificamente humano – o mundo da cultura – abandonamos definitivamente a possibilidade de vivermos segundo o “princípio do prazer” e a própria felicidade (desejo de todos os homens) não poderá mais se concretizar: cultura é repressão das pulsões libidinais e sem ela não teríamos nenhuma instituição humana, nenhum código de conduta intersubjetiva, nenhuma moral normativa, nenhuma convivência social. O preço da civilização-cultura foi esta abdicação da realização do que há de mais profundo (e também violento) em nossos desejos. Aceito o argumento: até porque prefiro abrir mão de dar vazão aos monstros que me habitam, do que ver monstros em toda alteridade e supô-los ameaças à realização de meu prazer.
Mas, uma vez estabelecido o mundo dos artefatos humanos, quer dizer, desde que fomos expulsos do Paraíso e tivemos que “ganhar o pão com o suor do próprio rosto”, e no momento em que Babel se tornou a expressão, ao mesmo tempo, da diversidade e do conflito mediado pela linguagem, que raramente tivemos “paz” entre as culturas e, se hoje assistimos à verdadeira explosão de reivindicações identitárias, isso mostra apenas o quanto a construção civilizacional, sobretudo a ocidental, foi feita de estratos arqueológicos soterrados em que o libertário e o opressivo de cada cultura depositam seus resíduos.
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Em outro registro muito diferente, Peter Burke observou que até século XVI não havia distinção entre “cultura popular” e “cultura erudita”: o bufão que se apresentava no mercado semanal era o mesmo que animava as noitadas do Barão; o bardo que peregrinava de cidade em cidade, contando histórias de amor cortesão, era o mesmo que frequentava os salões da nobreza. Com a formação dos Estados Nacionais, uma língua vernacular única e a repressão que se seguiu aos “patouas” e dialetos regionais em que as culturas “populares” se expressavam e, sobretudo, com o aparecimento dos sistemas nacionais de ensino, as culturas populares europeias praticamente desapareceram. Foram os intelectuais que as retomaram, sobretudo com o Romantismo e sua tentativa de encontrar na “alma do povo” (Volksgeist), um solo onde assentar uma nacionalidade autêntica, vista a desconfiança que esse movimento alimentava em relação ao “universalismo abstrato” francês: uma Nação seria sobretudo uma entidade cultural, uma tradição, uma língua, determinados costumes, fixados na psicologia de um povo, na “alma nacional”.
O problema foi o aparecimento, nas sociedades de capitalismo tardio, das “massas”. Para Ortega y Gasset (A rebelião das massas, 1930), “até uma época recente, as pessoas viviam confinadas em suas aldeias: a massa surge quando as fronteiras territoriais se dissolveram”. Assim, o significado de “rebelião das massas”, que ele cunhou, é justamente o de ocupação pelas camadas subalternas, dos lugares tradicionalmente preenchidos por uma elite cultural, o que Gustav Le Bon e Gabriel Tarde identificavam com a chegada da violência, da vulgaridade, da promiscuidade na vida social, distante dos “autênticos valores culturais” da civilização ocidental.
Os frankfurtianos da primeira geração elaboraram o conceito de “indústria cultural” para tentar cobrir um fenômeno novo trazido pela cultura de massas: se a cultura burguesa permitia o “vôo do espírito” (Hegel), a fuga temporária da facticidade da vida ordinária através da Arte, aqui entendida como crítica e utopia, e se, por outro lado, a indústria representava o mundo das trocas, da produção material de mercadorias, a crítica e a utopia se transformaram também em mercadorias para consumo: a cultura virou “entretenimento” e a “libertação” agora se vende e se consome como qualquer produto. Resultado: o pensamento não seria mais capaz, com o advento da indústria cultural, de pensar o próprio pensamento.
Bem mais tarde, Vargas Llosa (Breve discurso sobre a cultura) mostrou que a cultura sempre estabeleceu clivagens sociais entre as pessoas que a cultivaram ou que dela eram excluídas. Mas tudo mudou, e a Antropologia parece ter uma imensa responsabilidade nisso, estabelecendo que “cultura” seria a soma de crenças, conhecimentos, linguagens, costumes, usos, sistema de parentesco, em suma, de tudo que um povo diz, faz, teme ou adora. Queria também abjurar o etnocentrismo preconceituoso e racista da ocidentalidade europeia: no fundo, a Antropologia não passaria de uma espécie de consciência de culpa do Ocidente! “Desse modo, diz Llosa, foram desaparecendo de nosso vocabulário, afugentados pelo medo de se incorrer no politicamente incorreto, os limites que mantinham a separação entre cultura e incultura, pessoas cultas e incultas. Queríamos acabar com as elites”.
De resto, o declínio semântico de um conceito, sua horizontalização antropológica e a dissolução das fronteiras que definiam campos sociais e simbólicos, hierarquias e formas de prestígio e acumulação de certo tipo de “capital”, não nos deve fazer esquecer que a cultura pode ser experimentação e reflexão, pensamento e sonho, paixão e poesia e uma revisão crítica constante e profunda de todas as nossas certezas, teorias e crenças. Mas não pode afastar-se da vida real, a vida vivida, que nunca é a dos lugares-comuns, sem risco de desintegrar-se.
Foto da Capa: Freepik
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