A Constituição Federal brasileira tem entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, que no caso das pessoas com alguma deficiência merece atenção especial, principalmente no que concerne à inclusão e à igualdade.
Vale fazer um pequeno histórico para destacar que esta preocupação no Brasil, felizmente, tomou relevo, e em 2007, o Brasil tornou-se signatário da Convenção de Nova Iorque e, em 2015 foi instituído, por meio da Lei 13.146/2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, também conhecido como Lei Brasileira de Inclusão (LBI).
Nesta ocasião surgiu, no Brasil, o instituto da Tomada de Decisão Apoiada, que juntamente com a Curatela, passaram a ajudar as pessoas com deficiência a exercerem sua capacidade legal. Com esse instituto, a pessoa com deficiência passou a ter o direito de escolher apoiadores para tomar as decisões referentes aos atos da vida civil.
Isto aconteceu porque, depois da Convenção de Nova Iorque, vários países passaram a ver e a reconhecer a pessoa com deficiência como um sujeito capaz, e a entender a sociedade como responsável pela inclusão, cabendo a ela eliminar as barreiras que impediam o exercício da soberania.
De acordo com a LBI, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:
I – os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;
II – os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;
III – a limitação no desempenho de atividades; e
IV – a restrição de participação.
Vale informar que a LBI estabeleceu que a toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação, bem como que a pessoa com deficiência será protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante. Para fins dessa proteção, são especialmente vulneráveis a criança, o adolescente, a mulher e o idoso, com deficiência.
A partir da LBI passou a ser um dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.
Todavia, na vida prática ocorrem situações que algumas vezes fazem colidir a proteção da autonomia gerada pela necessidade de inclusão com a proteção da dignidade da pessoa humana com deficiência, sendo que compartilho do pensamento daqueles que acreditam que nessas situações a dignidade da pessoa humana deve ser privilegiada, o melhor interesse da pessoa com deficiência deve preponderar, sem efeitos nefastos para ela própria ou para terceiros.
A este passo é importante informar que no ordenamento jurídico brasileiro podemos classificar as pessoas como capazes, absolutamente incapazes ou relativamente incapazes, sendo estes, divididos entre assistidos, curatelados, ou assistidos-curatelados, meio pelo qual, o melhor interesse da pessoa com deficiência estará protegido.
Com a LBI e suas repercussões no Código Civil de 2002, houve a dissociação entre deficiência e capacidade. O ordenamento jurídico brasileiro se deu conta de que deficiência e incapacidade são coisas distintas, que na maior parte das vezes não andam juntas.
Na esteira dessa linha de pensamento, a LBI estabeleceu que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I – casar-se e constituir união estável;
II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
Quando estamos diante de uma pessoa com deficiência física, é fácil perceber que não há barreiras ao exercício da autonomia privada, ou que, quando existem, são muito poucas, e a pessoa pode exercer os direitos que lhe são garantidos pela LBI.
Todavia, quando estamos diante de uma pessoa que apresenta alguma deficiência psico-neurológica significativa limitante, que prejudica sua autonomia para expressar qual é a sua vontade e, pior ainda, sequer discernimento sobre o que está acontecendo ao seu redor e as consequências que poderão advir para ela, há de se cotejar como fica a autonomia da vontade diante da dignidade da pessoa humana que deve ser protegida, do melhor interesse desta pessoa com deficiência.
Veja-se que nosso Código Civil, desde 2015, classifica como (i) absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos; (ii) incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer, os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; os ébrios habituais e os viciados em tóxico; aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; e os pródigos.
Como se vê, não há disposição específica para aqueles que apresentam disfunção psíquico-neurológica, cuja deficiência deve ser classificada a partir da sua autonomia, do seu grau de discernimento, a fim de que se possa avaliar corretamente as possíveis consequências para essas pessoas, que em alguns casos precisam ser protegidas, seja por uma curatela ou por uma tomada de decisão apoiada.
Hoje, no entanto, em tese, não há mais a associação entre deficiência e capacidade, essas duas situações não estão mais atreladas. Ao revés, as pessoas com deficiência, qualquer deficiência, estão na classificação de capacidade absoluta ou plena, e enfermidades ou doenças mentais não compõem mais impedimento de discernimento, levando ao entendimento de que a incapacidade absoluta não está mais a elas relacionada ou ao menos não pode ser presumida
Destaque-se que os absolutamente capazes podem agir por si, por representação e mandato ou por ratificação, enquanto os relativamente incapazes, por representação, por assistência ou por representação e assistência, classificação que leva aos institutos da curatela e da tomada de decisão apoiada.
A curatela substituiu a interdição, e desse modo, a antiga ação de interdição hoje é chamada de ação de curatela, que tem o fim de declarar que a pessoa não tem capacidade para atos da vida civil, e no plano processual a antiga ação de interdição hoje é chamada de curatela. Cabe informar que o atual Código de Processo Civil (CPC) ainda menciona “interdição”, ao invés de “curatela” porque o projeto deste CPC foi elaborado anteriormente a LBI.
A tomada de decisão apoiada surgiu como uma alternativa à curatela, permitindo à pessoa relativamente incapaz, com deficiência, mas que manifesta vontade, que ela escolha “pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para poder exercer sua capacidade.” Ela, assim, permitirá uma forma de manter a autonomia da vontade das pessoas com necessidades especiais e também trata dos direitos e da acessibilidade das pessoas com impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial.
Segundo o professor Nelson Rosenvald, em A tomada de decisão apoiada – primeiras linhas sobre um novo modelo jurídico promocional da pessoa com deficiência. Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões, Belo Horizonte, n. 10, p. 11-19, jul./ago. 2015. “Na tomada de decisão apoiada, o beneficiário conservará a capacidade de fato. Mesmo nos específicos atos em que seja coadjuvada pelos apoiadores, a pessoa com deficiência não sofrerá restrição em seu estado de plena capacidade, apenas será privada de legitimidade para praticar episódicos atos da vida civil. Assim, esse modelo poderá beneficiar pessoas com deficiência com capacidade psíquica plena, porém com impossibilidade física ou sensorial (v.g. tetraplégicos, obesos mórbidos, cegos, sequelados de AVC e portadores de outras enfermidades que as privem da deambulação para a prática de negócios e atos jurídicos de cunho econômico).”.
Já a Curatela é algo excepcional, uma medida extraordinária, e devem estar claras nas sentenças as razões e motivações do seu deferimento, pois se busca preservar os interesses do curatelado. O juiz na sentença deverá indicar o nível de curatela a ser exercido pelo curador, indicando especificamente os atos da vida civil que serão limitados.
As avaliações especializadas deverão considerar que cada indivíduo apresente uma determinada estrutura psíquica, possua diferentes níveis de compreensão, pois não há um padrão pré-definido para cada tipo de deficiência. Portanto, é fundamental a atuação das equipes multidisciplinares e dos médicos, para que se possa estimar as capacidades civis possíveis em razão dos limites decorrentes das capacidades psíquicas individuais avaliadas.
Exceto se a incapacidade for ostensiva, a prova pericial é imprescindível para a avaliação da capacidade da pessoa, e conforme o CPC “pode ser realizada por equipe composta por expertos com formação multidisciplinar, devendo o laudo pericial indicar especificamente, se for o caso, os atos para os quais haverá necessidade a curatela”.
A jurisprudência vem restringindo a curatela aos atos patrimoniais e negociais e vêm reconhecendo que da mesma forma como não é possível rotular-se por decisão judicial que alguém é absolutamente incapaz, não se pode negar que em alguns casos a incapacidade supera a necessidade de uma assistência apenas para algumas demandas financeiras, e nestes casos, cabe uma curatela.
Importante esclarecer que na tomada de decisão apoiada, o pedido é feito pela própria pessoa com deficiência, na curatela ele é requerido por outra pessoa, e há o deferimento da curatela provisória respaldado em atestado ou atestados médicos juntados com a petição inicial. Contudo, quando a incapacidade for ostensiva e puder ser certificada pelo oficial de justiça, a curatela provisória poderá ser deferida, com dispensa da perícia e do laudo. Da mesma forma, a curatela provisória pode ser determinada sem exame técnico específico, sempre que for possível verificar, no atestado médico, a incapacidade ampla da pessoa em razão da qual é requerida a curatela.
Infelizmente, ainda que seja muito importante a inclusão e a igualdade, em algumas situações é necessária a existência de uma curatela para a proteção da pessoa com deficiência. Sem a ajuda de um curador, a pessoa com deficiência poderá vir a suportar consequências terríveis que prejudiquem a sua sobrevivência, seu conforto, e sua dignidade, pois as doenças mentais existem e repercutem no discernimento e na manifestação da vontade e, assim, este indivíduo precisa ser protegido.
Foto da Capa: Freepik
Mais textos de Marcelo Terra Camargo: Clique Aqui.