Não sei se é isto que acontece com você, caro leitor, mas tenho sempre um sentimento saturnal, melancólico quando acabo de fechar a última página de um livro com o qual passei vários dias na companhia. Como se eu não soubesse quando eu o reveria, como estarei ao relê-lo, o que gostaria de dizer ao seu autor caso o encontrasse. Ocorre que no dia seguinte em que terminei de ler o livro de Paul Auster (1947-2024), “A invenção da solidão”, ele…morreu!
O livro trata de passagens memorialísticas do autor, algumas ficcionadas (ele mesmo afirma), em que a primeira parte refere-se à morte de seu pai, que ele mal conheceu e que morava só e isolado numa casa numa outra cidade. Para desocupar e fazer o inventário da casa, Auster se deslocou até lá e começou a “descobrir” um pai que ele nunca conheceu: “Não há nada mais terrível, aprendi então, do que ter de encarar os objetos de um morto. (…) O que se pode pensar, por exemplo, de um armário cheio de roupas silenciosamente à espera de serem usadas de novo por um homem que não virá mais abrir a porta? (…) E no entanto elas ainda dizem algo: emblemas da solidão em que um homem toma decisões sobre si mesmo: se deve tingir o cabelo, se deve vestir essa ou aquela camisa, se deve viver, se deve morrer. E a futilidade de tudo isso, quando há a morte. (…) Eu continuava à espera de que meu pai entrasse de repente e, espantado, me perguntasse que diabo eu estava fazendo ali”.
Eu perdi meu pai aos nove anos de idade, um pai ausente e que não me deixou algo que pudesse me fazê-lo conhecer – objetos, escritos, roupas, perfumes, sapatos – que me permitissem, a partir daí, desses objetos, conhecer aquele de quem tenho apenas a lembrança do nome, da vaga fisionomia e dos cigarros “Continental” sem filtro! E vi que, assim como Auster, seria possível conhecer um morto pelo que ele “deixou” para trás, em que sua presença solitária encontra-se nas coisas que ele escolheu conservar. A solidão daquele pai, isolado em uma casa distante, terminou com sua morte, quando seu filho, ao encontrar seus objetos, juntou-se a ele numa transcendência só possível pela literatura.
Octavio Paz achava que a vida é um longo (ou curto!) intervalo entre duas solidões (“O labirinto da solidão”): a do nascimento, quando somos jogados num mundo estranho e o “cordão” que nos ligava é cortado, e o da morte, quando enfrentamos a única experiência que não pode ser transmitida, ensinada, ou ensaiada: a experiência derradeira que nos pertence exclusivamente! E, no entanto, para ele a solidão não é uma experiência individual e subjetiva: há “povos solitários”! Naquele longo e belíssimo ensaio sobre o México, Paz mostra que existem “povos que foram abandonados pela História” e estão condenados a repetir, como vítimas, massacres inomináveis, referindo-se ao extermínio dos Astecas (sob Cortéz) e ao massacre dos estudantes na Praça Tlatelolco, em 1968, e que resume a famosa frase de Lázaro Cárdenas: “Pobre México. Tão longe de Deus e tão perto dos EUA”.
Penso que o sentimento subjetivo de solidão deve alcançar, nessa nossa época, níveis jamais experimentados na história humana. Baudelaire já falara (“O Spleen de Paris”) da “multidão solitária”, quer dizer, do homem aglomerado na massa urbana, que oferece sensação de pertencimento, mas completamente alienado em relação a um projeto de vida autêntico e pessoal. Marx achava que a “consciência de classe” poderia fornecer formas de ação política “revolucionária” que nos devolveria, lá pelo fim da História, nossa Humanidade perdida. Se a “fábrica” foi o símbolo das tensões produzidas pela sociedade industrial moderna; se o Shopping Center é o símbolo da sociedade do consumo imaturo e manipulado; a Academia de Ginástica parece ser o símbolo atual das formas mais patológicas de narcisismo (sempre sob o argumento da “qualidade de vida”) e individualismo em que, até a música que ali toca, não é feita para ser ouvida, e muito menos apreciada, mas para dar “ritmo” aos corpos diante de um espelho. Não é à toa que o ódio social e político tenha se espalhado pelo mundo, que o trânsito tenha se tornado uma experiência “hobbesiana” de guerra de todos contra todos, numa sociedade regida pela performance, pelo sucesso, pela efemeridade, pela anulação dos direitos, por novas formas de construção das subjetividades; da crise das relações familiares, educacionais, políticas e ideológicas, num mundo sem passado para nos orientar e sem futuros radiosos ou utópicos.
Há muitos anos Baudrillard vaticinara “O fim do social” (“À sombra das maiorias silenciosas”). Acho que ele está chegando, e a solidão que o acompanhará será a forma subjetiva de sobrevivência individual.
Foto da Capa: Paul Auster / Divulgação
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