A vida do século XXI está sendo registrada, quase minuto a minuto, nas redes sociais. Os acontecimentos mais importantes de nossas vidas estão lá, fotografados, filmados, narrados em voz ou em texto. Se lá está o registro, as lembranças do que aconteceu nos anos anteriores, trazidas pelas próprias redes, fazem as vezes de museu particular.
O primeiro dia de aula de um filho, aquela viagem, o casamento de um amigo. Tudo volta para ser vivido novamente, nem que seja por apenas alguns instantes. Pois hoje as redes sociais do meu filho Amir trouxeram uma foto que ele tirou com Andrés D’Alessandro, há 8 anos, data na qual seu ídolo partiu para defender as cores do River Plate por um ano.
Essa coluna fala de duas fotos com um intervalo de pouco mais de 8 anos entre elas, mas que representam uma vida para nossa família.
Meus filhos sempre amaram o futebol e o Inter. Se Beni faz bonito nas quadras e gramados, sendo o único Bliacheris bom de bola desde a saída dos judeus do Egito, Amir sempre foi o “sabe tudo” dos esportes. Seja o nosso futebol, jogado com a bola redonda aos pés ou no futebol americano, aquele em que uma bola oval é lançada com as mãos.
Sendo colorados, desde cedo depositaram as confianças nos pés e dribles de D’Alessandro, chamado carinhosamente de “Dale” pelos colorados. E, como bons fãs e torcedores, fomos juntos ao “Lance de Craque”, jogo beneficente organizado pelo argentino. Após o jogo, jantamos em um restaurante no próprio estádio, pois havia prometido isso aos guris e todos sabem que promessa é dívida.
Estávamos voltando para o nosso carro quando percebemos uma pequena e ruidosa multidão. Eram torcedores que estavam na saída do vestiário, esperando os jogadores, pois queriam ver seus ídolos de perto. O mais aguardado, claro, era D’Alessandro, seu nome era gritado pela multidão enquanto era entrevistado pelos repórteres da televisão.
O “gringo” estava obviamente cansado, já haviam se passado mais de duas horas do término da partida e sabe-se lá com quantas pessoas ele tinha falado naquele dia. Os seguranças pediram calma e avisaram que ele estava muito cansado, mas que iria tirar fotos com quem estava esperando. Mas, como era tarde, seriam fotos em grupos e ele não iria distribuir autógrafos.
Meu caçula, Beni, com 3 ou 4 anos, estava no meu colo. Acompanhávamos a cena a uma distância segura quando Amir se desgarrou e correu até as grades posicionadas para separar jogadores e torcida. O Dale já estava entrando de volta no estádio quando vejo Amir falando algo para um segurança com o dobro da altura (e largura) do guri. O fortão vai lá, fala algo no ouvido do craque e ele volta ao pátio e vai na direção apontada pelo segurança. O Dale está indo em direção ao Amir! O Dale ficou ao lado de Amir!
Saio correndo com o telefone à mão e registro aquela que foi a única foto individual que ele tirou com os torcedores naquele pós-jogo. Ele posou para a foto e eu balbuciei um “gracias” que nem sei se ele ouviu no meio daquela histeria toda. É essa foto aqui ao lado, de baixa qualidade, mas com alta voltagem emocional.
“Golpe do autista”
Essa foto se tornou inesquecível e virou uma anedota familiar. Curioso com a cena, perguntei para Amir como ele havia conseguido essa foto única, e ele me respondeu, com um olhar maroto: “Dei o golpe do autista”.
Eu, surpreendido, perguntei: “o que é o golpe do autista”. Ele me deu um olhar seguro e falou calmamente: “eu fui até o homem que estava lá (o segurança); e falei: sou um guri autista que adoro o D’Alessandro, quero uma foto com ele”.
Enfim, resolvido o mistério! Já gostávamos do “Cabezón”, e, naquele dia, ele virou ídolo inquestionável por sua atitude.
Mas a maior alegria foi ver Amir resolver a situação sozinho. Pensem bem, era um autista no meio de uma multidão barulhenta, uma situação que ele detestava, mas o desconforto não o impediu de sair correndo para conseguir o que queria. Se autistas são conhecidos por sua rigidez, Amir teve jogo de cintura para encontrar uma solução rápida. Talvez inspirado na marca registrada do craque, deu um verdadeiro drible “la boba” em todo mundo e voltou para casa com a tão desejada foto.
Sim, ele se utilizou de sua condição de autista para conseguir o queria, demonstrando uma malícia que não imaginávamos que ele ou qualquer outro autista teria. Foi malandro? Sim! Mas não mentiu, não agrediu ninguém e teve mais equilíbrio emocional que muito marmanjo por perto. Nós estávamos felizes e orgulhosos pelo nosso filho e ele, pela foto com o Dale. O “golpe do autista” virou uma espécie de piada familiar, sempre lembrada em situações nas quais se faz necessário dizer que Amir é autista.
Esse foi um dos momentos mais felizes dos muitos vividos em um estádio de futebol. Mais uma vez digo “gracias” a D’Alessandro.
Quase 10 anos separam as duas fotos. Essa última foi tirada neste sábado, 03 de fevereiro, na piscina do condomínio onde reside D’Alessandro, já aposentado dos gramados.
O Amir da primeira foto era uma criança recém expulsa de um colégio no meio do ano e que havia terminado o ano letivo em outra escola, encontrada às pressas depois de ouvirmos diversos “nãos”. Voltamos para Porto Alegre após uma temporada em Brasília, onde descobrimos seu autismo. Nas nossas cabeças, a minha e a da minha esposa, Brenda, milhares de perguntas e incertezas. Uma das maiores dúvidas era se ele conseguiria terminar os estudos escolares diante das dificuldades enfrentadas nas escolas.
Quanto à expulsão por “indisciplina”, recorremos à Justiça e vencemos em todas instâncias, recebemos uma indenização por danos morais e a injustiça sofrida ficou conhecida em todo Brasil sendo divulgada em TVs, rádios e jornais.
O Amir da segunda foto já concluiu o ensino fundamental e o ensino médio e está perto de concluir o curso de jornalismo na PUCRS. E, como futuro jornalista, aproveitou para fazer perguntas espinhosas para o craque, que respondeu a todas e fez uma bela tabelinha.
O que eles falaram? Não posso dizer, pois a conversa foi em “off”. Ah, esses jornalistas….
Foto da Capa: Portal Colorado