“Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias. Houve épocas de chuvisco em que todo mundo pôs a sua roupa de domingo e compôs uma cara de convalescente para festejar a estiagem, mas logo se acostumaram a interpretar as pausas como anúncios de recrudescimento. O céu desmoronou-se em tempestades de estrupício e o Norte mandava furacões que destelhavam as casas, derrubavam as paredes e arrancavam pela raiz os últimos talos das plantações.”
Há um ano, escrevi um texto comparando a chuva incessante que se derramava sobre o Rio Grande do Sul às chuvas míticas de Macondo. Buscava, em Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, algum consolo diante da tragédia que se espalhava pelo meu Estado. O texto, terminei em menos de uma hora. Bastava uma revisão. Já a enchente de 2024, essa ainda reverbera em nossas lembranças e alguns ainda sentem as dores daqueles tristes dias de maio.
Desde 1941, o Rio Grande do Sul não enfrentava uma calamidade de tamanha magnitude. E, como tantas vezes na história, o desastre foi anunciado. Os sinais estavam todos ali, mas os negacionistas — sempre eles — preferiram acreditar que não passava de alarme falso, exagero da mídia, histeria coletiva. Quem dera estivessem certos. Quem dera não tivéssemos visto nos dias seguintes grande parte do nosso estado embaixo da água. Quem dera fosse apenas uma semelhança com a enchente de 1941, e não uma superação trágica de sua brutalidade.
Ainda assim, em meio ao lodo e ao lamento, coisas boas aconteceram. A solidariedade encontrou caminhos: escolas e instituições abriram as portas para abrigar os desalojados, doações cruzaram o país em caminhões abarrotados, braços se estenderam, mãos se deram. O poder público, pressionado pela urgência, se movimentou — não sem tropeços — para reconstruir o que foi perdido. Houve, é verdade, oportunismo, mas esse é um capítulo que não desejo abrir neste texto.
Prefiro lembrar que, mesmo quando tudo parecia ruir, houve quem permanecesse. Quem insistisse em reconstruir — não apenas paredes e pontes, mas também alguma fé no humano. Como em Macondo, depois da chuva, resta o barro, o silêncio e o trabalho árduo de recomeçar. E foi nesse esforço, feito de dor e esperança, que muitos escritores encontraram nas palavras uma forma de respirar, transformando a angústia em literatura. Muitos desses autores sentiram a tragédia na própria pele — perderam casas, livros, memórias. Outros, mesmo ilesos, deixaram-se atravessar pela dor coletiva e, com sensibilidade e empatia, ofereceram suas palavras como abrigo. A escrita, nesse cenário, tornou-se ponte entre os que viveram e os que quiseram compreender, entre o luto e a luta.
Este texto que escrevi há um ano, inspirado por uma tragédia que não podia deixar de ser compartilhada, faz parte de Enchente, a antologia que nasceu da vivência coletiva dessa dor. Publicada pela Editora Bestiário e lançada na Feira do Livro de Porto Alegre de 2024, a coletânea reúne 35 vozes de escritores gaúchos, organizados em um grupo de WhatsApp coordenado pelo escritor, professor e ex-parlamentar Adeli Sell.
Publicado pela Editora Bestiário e lançado na Feira do Livro de Porto Alegre em 2024, o livro traz prefácio de Rafael Guimaraens, autor de A Enchente de 41, e organização assinada por mim, ao lado de Athos Miralha da Cunha, Cassio Andrade Machado, Maíra Baumgarten, Malu Baumgarten e Vera Molina. A coletânea reúne 35 escritores gaúchos — entre vozes estreantes e nomes já consolidados — que, por meio da escrita, registraram não apenas o sofrimento daqueles dias, mas também o gesto resiliente de seguir adiante. São textos que tocam com delicadeza a dor e o desalento, mas também iluminam o caminho com esperança, como quem constrói, palavra por palavra, uma ponte sobre as águas que nos atravessaram.
Com Enchente, não apenas documentamos a tragédia. Reforçamos a certeza de que, por mais que o mundo desabe ao nosso redor, a capacidade de resistir e recomeçar sempre estará, em algum lugar, nas palavras que escolhemos escrever. Agora, este ano, nos preparamos para uma nova antologia. Não mais com o tema da enchente, mas com outro que, igualmente, nos atravessa e nos inquieta. Desta vez, escreveremos sobre os tempos sombrios — aqueles que já atravessamos, os que habitam o presente e os que, como fantasmas, ainda nos assaltarão no futuro. Como diz a música de Chico Buarque, vivemos uma constante Roda Viva, que chega e “carrega o destino pra lá”.
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Foto da Capa: Giulian Serafim / PMPA