Cardones são imponentes cactos das regiões altas, que se desenvolvem ao longo da Cordilheira dos Andes. Eles crescem desde a pré Cordilheira, lugar onde conheci um cardonal, nada mais do que um jardim de cardones. Fica às margens da rodovia conhecida como Recta del Tin Tin, quase 20 quilômetros originalmente abertos pelos incas que, segundo consta, buscavam fazer um traçado reto perfeito. No Parque Nacional de Los Cardones, os cactos gigantes impressionam demais, tanto quanto as cores espetaculares das montanhas da região, na província argentina de Salta. A três mil metros de altitude, alguns alcançam três metros de altura e são necessárias duas ou mais pessoas para simular um abraço, obviamente, sem encostar nos espinhos.
A condição de alta resistência do cactos é inerente, impossível não pensar na força desta espécie que sobrevive ao frio e às longas secas. Mas é a característica inversa, sua enorme fragilidade no início da existência, que inspirou esta reflexão depois de um passeio cheio de beleza. Para um cardón vingar, é vital que suas sementes caiam e germinem debaixo de uma planta que o proteja das geadas e do sol, e onde consegue aproveitar a umidade do solo. Um sistema tão fundamental que a “planta cuidadora” é comparada à uma niñera (babá) ou à uma nodriza (mãe emprestada, em tradução livre). Esta niñera garante a nutrição do pequeno cacto e quem muito se presta a este trabalho é a jarilla, arbusto com ramos peludos, folhas finas e flores pequenas, que se espalha por todo o Jardin de los Cardones. Estima-se que, das quase 80 mil sementes que cada fruto do cardón produz, somente uma germina. Uma! E esta vida que começa debaixo de uma planta como a jarilla, no futuro pode alcançar a longevidade de 200 anos.
Mesmo em tempos de despedida da quase centenária rainha inglesa, ainda estamos muito longe de pensar em uma vida humana duradoura e saudável de dois séculos. Mas é verdade que no decorrer da nossa existência, tão mais breve que a de um cardón, precisamos muitas vezes contar com as nossas jarillas. Não me refiro os cuidadores que temos (e que todos deveriam ter) ao nascer. Mas penso nos tantos renascimentos que uma vida inteira contabiliza. Uma nova etapa pessoal, mudança urgente de endereço, acidentes e doenças, algum imprevisto sério, desemprego, o rompimento de uma relação, mortes de pessoas amadas e aquelas dores devastadoras da alma são episódios que antecedem uma retomada. Até mudanças para o próprio bem trazem junto a fragilidade do desconhecido, então, quem não prefere enfrentar o novo com suporte? É nesta série de momentos que encontramos as pessoas que nos nutrem e sustentam, permitindo que a gente se supere, desabroche ou, em casos extremos, renasça das cinzas do improvável, como aqueles sobreviventes cactus das alturas.
Para existir em um ambiente seco, os cardones acumulam água em seus tecidos, como se fossem um grande barril. No verão, inclusive, se expandem. Suas folhas, transformadas em espinhos, proporcionam excelente defesa porque, ao ter uma menor superfície, evitam a perda de água pela transpiração. Da mesma forma, e pele muito grossa e impermeável também evita as perdas da transpiração. Essa inteligência da natureza, movida pela necessidade de sobreviver, é outra lição dos cardones. Por que nós, humanos, desperdiçamos tanto? Comprando coisas sem utilidade, roupas para usar uma única vez, objetos que só ocupam espaço e atravancam a casa? Pior ainda, por que desperdiçamos tempo insistindo em batalhas perdidas? E jogamos boca afora energia com brigas e debates intermináveis? Por que não domamos nosso ego, fortalecendo o que temos de melhor e nos abastecendo de boa água emocional? Aquela que garante qualidade nos relacionamentos e paz de espírito?
Era um dia de vento sibilante quando conheci o jardim dos cardones, fazia aquele frio típico da altitude, mesmo com sol. Havia poucos visitantes e, por um tempo, éramos só eu e meu namorado Gustavo a apreciar esses vegetais aparentemente tão áridos, mas na essência tão cheios de vida. Na estrada passavam raríssimos carros, então se ouvia apenas o ruído da ventania. Quando deixamos o local, não conseguimos esquecer o incrível papel das jarillas na manutenção daquela paisagem toda. Não fossem elas, em algum momento a coleção a perder de vista dos cardones iria se acabar. Foi o que me levou pensar nas nossas próprias niñeras, talvez um balanço que a gente faça só a partir de uma idade, quando já percorremos boa parte do caminho, nem sempre retílineo como a Recta del Tin Tin. Como ouvi certa vez de uma amiga dedicada à Astrologia, chega um tempo em que “uno tiene varias vidas en esta vida”. Reforça o que penso sobre nossos renascimentos. Gabriela, esta amiga, teve perdas pessoais dramáticas na infância, mas segue forte como um cardón e costuma dizer: “de lo que se pueda, disfrutar lo mejor”. Típico de quem conseguiu se fortalecer com os espinhos e tem, ainda, a generosidade das jarillas.
*Daniela Sallet é jornalista e documentarista