Estamos em novembro, o mês da Consciência Negra, o mês que muitos irmãos e irmãs pretos são lembrados e chamados para palestras gratuitas sobre antirracismo, mês que muitas empresas e organizações só conseguem abordar o tema neste período do ano por fazer parte de um calendário de causas institucionalizadas. Mas eu quero falar de outro enfoque aqui. Quero falar da sensação que tive em 2022 de ver uma amiga que conheci na adolescência virar uma Tia do Zap.
Mas antes eu vou desconstruir muita coisa junto com vocês…
O primeiro argumento seria: Patrícia, suas amigas de adolescência estão na faixa dos 50 anos, estas em especial, que viraram as tias do Zap, sempre foram as que seguiram a cartilha da vida classe média alta em POA: colégios como o Americano, intercâmbio nos EUA, no High School, casamento como desejo de um lugar na sociedade, debut no Leopoldina, ballet na Vera Bublitz… para para por aí kkkk vou começar a gritar porque eu não tinha estas amigas aí….
Minhas amigas surfavam, queriam viajar o mundo, estudar na Europa, criar negócios sustentáveis, líamos juntas Profecia Celestina (olhando de fora agora era um tipo de escape da realidade) …, mas tá bom… a gente tinha 15 anos e eu sempre fui na contramão… nunca usei drogas kkkk, mas era adepta de livros de autoajuda e romances como Sabrina e Júlia… ou seja, uma droga igual…kkk
Só que na minha vida a entrada na Universidade Federal mudou tudo… tudo mesmo… Encontrei meninas e meninos como eu, que liam política, que tinham participado do comitê de Direitos Humanos da Anistia Internacional, do Colégio Anchieta. Que amavam arte, política e cinema, vindos do colégio Bom Conselho. Com 18 anos, eu entrei em uma bolha intelectual e nunca mais de lá saí… Esta amiga, em especial, eu via de ano em ano… se formou em Administração e depois foi estudar na Europa.
Ela sempre me mandava cartinhas a mão me contando tudo que estava vivendo. Depois, quando voltou a POA já casada, me contava sobre os negócios incríveis que tinha descoberto… até um dia ela me convidou para uma reunião importante, um negócio imperdível… quando cheguei dei de cara com uma reunião da Amway…
Naquele dia, naquela reunião, eu senti tanta raiva daquele método de captar pessoas relacionando resultados de vendas a sonhos e naquele tom messiânico, que pensei: estudou na Europa pra isto? … enfim… fui em respeito ao convite, mas anotei cada palavra daquele coach de vendas para descontruir… ela na época me disse: “Aí, amiga…. vamos nos tornar ricas juntas?”
E eu pensei: se para atingir a riqueza tenho que deixar meu cérebro de lado, tô fora. E assim foi… ela foi para São Paulo ser executiva de vendas e chegou à diretora de vendas de multinacionais. Teve burnout, problemas sérios para conciliar a maternidade e as exigências profissionais e voltou para POA. E mesmo assim nunca questionou o sistema que viveu.
Eu, pelo meu lado, dei muito com a cara na parede, abraçada com a minha inteligência diferenciada, mas buscando caminhos que faziam sentido para mim.
E aí veio a pandemia, a vi cada vez mais abraçada nas técnicas de coach e psicologia positivista americana… até que ano passado, em passagem a São Paulo, eu a encontrei. Retornou a capital Paulista, o ex-marido é CEO de uma multinacional, e ela quer se recolocar no mercado como gestora de pessoas naquela linha de desconstrução crenças limitantes, método Gallup e tal… No nosso papo compartilhei minhas pesquisas de narrativas emergentes, e ela se interessou pela referência que dei do livro do Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo.
Mas vi que trilhamos caminhos diferentes de vida… muito diferentes. Ela preocupa em se enquadrar no sistema. E eu ocupada em reinventar o sistema… carinhosamente ela sempre me disse: Paty você é radical. kkkk
Em 2022, estive novamente em São Paulo, mas não conseguimos nos ver… mas em uma ligação pelo insta ela me contou que estava doente, saindo de um processo depressivo… a abracei virtualmente com todo meu amor… afinal, nos conhecemos há mais de 45 anos. E logo após no início do 2º turno eu vi no seu zap e no seu Facebook posts claramente bolsonaristas.
Chamadas para a live da liberdade. Aí meu coração parou mais do que se ela tivesse morrido… me vieram a mente alguns papos, conselhos que eu ignorava: “Fala menos de ser negra amiga. Esquece isto. Se expõe menos. Não te posiciona…” Entre um café e outro, eu não tinha ouvido os sinais… ela estava em transformação há anos. Eu sempre insistia: “Amiga, eu te ensino a usar as redes sociais”. “Ai, não Paty! Deixa assim… não gosto de me expor.” Mas pelo o que percebi agora, ela estava sendo trabalhada no grupo do zap e do Telegram para ser a nova geração de senhoras cidadãs de bem de 2022.
Este fato tem me feito refletir sobre quem são estas mulheres que estão na frente dos quarteis pedindo intervenção militar, que levam bolo, salgadinho e suco. Que rezam. E que acreditam firmemente que o Brasil só pode seguir com a vontade deles e delas. Na Profecia Celestina não tinha nada escrito sobre isto… ou será que eu ignorei assim como ignorei os sinais de que minha amiga querida se tornou a Tia do Zap?