“A experiência cotidiana parece demonstrar uma redução espetacular da vida interior. Quem, hoje, ainda tem uma alma? As novas doenças da alma são as dificuldades ou incapacidades de representações psíquicas que chegam a colocar a morte no espaço psíquico.” Julia Kristeva, Les nouvelles maladies de l’âme, 1993.
Aviso de spoiler: este é mais um texto sobre os bebês reborn e você deve estar cansado deles. Então pare aqui, exceto se você quiser conhecer o meu argumento. Ele é o seguinte: os bebês reborn não podem ser separados das love dolls. Ambos são sintomas de nossa miséria simbólica de que fala Bernard Stiegler, sintomas da redução espetacular da vida interior sob o capitalismo.
Meu título remete ao filme Vale das Bonecas, um drama americano de 1967 dirigido por Mark Robe e estrelado por Barbara Parkins, Patty Duke, Sharon Tate, Paul Burke e Susan Hayward. Baseado no best-seller do mesmo nome de Jacqueline Susan, foi um grande sucesso de bilheteira, mas fracasso de crítica, que só o valorizou após o assassinato de Sharon Tate. No filme, o termo “bonecas” é uma gíria relativa a antidepressivos, pílulas, drogas e barbitúricos usados para dormir, muito comum no meio artístico da época. Que a palavra “boneca” no filme seja associada a drogas é uma dessas coincidências sugestivas para a sociologia do filme de Dieter Prokop.
Boneca é sinônimo de quê?
É que entendo que estamos de volta ao Vale das Bonecas do filme: na discussão sobre as bonecas reborn, somos como as três jovens mulheres do filme que aspiram à felicidade em Nova Iorque nos anos 60, como os consumidores de bonecas reais aspiram à felicidade nas cidades contemporâneas. No filme, Neely O’Hara (Duke) quer ser feliz cantando; Jennifer North (Tate) é a bela atriz de talento limitado e Anne Welles (Parkins) é uma mulher ingênua do interior que busca a felicidade trabalhando numa agência artística. As três se tornam amigas e compartilham o desejo de ser feliz, mas só conhecem homens errados e, por essa falta essencial, esse fracasso em ser feliz, tornam-se dependentes de drogas, as “bonecas” do título do filme.
De lá para cá, as definições de bonecas foram atualizadas. Agora, numa espécie de paráfrase de si mesmas, entendo que a febre das bonecas reborn faz parte dos sintomas de relações que criam novos toxicômanos em nossa sociedade. Queremos, como as três amigas, ser felizes, mas fazemos escolhas erradas e as bonecas fazem parte delas. Anna Tscherdantzew fez uma ótima descrição da emergência do bebê reborn aqui em Sler e Luís Felipe Nascimento também as definiu, apontou aqui como o lugar do campo simbólico definido por um vazio existencial.
Perspectivas de análise
Há, é claro, inúmeras perspectivas para a análise do bebê reborn, onde a minha é apenas uma a mais. Destaco duas. A primeira é a sociológica, que as explica a partir da aplicação das categorias do normal e do patológico no contexto capitalista, como faz Veridiana Zurita. Sua abordagem tem a vantagem de trazer novas perguntas para o fenômeno: “O que está por trás da reação necessariamente negativa? Que significado ele oferece a uma sociedade organizada (também) a partir das redes sociais? Seria um espelho? Com o que se surpreendem aqueles que rotulam a prática reborn como “bizarra” e “anormal”? Por que nos perguntamos se é “saudável” ou não? A qual demanda de mundo a prática reborn responde? A que tipo de maternidade ela responde? Que mãe e que bebê é possível performar através da prática reborn? Que mãe e que bebê tal prática mimetiza? O que seria a prática reborn senão uma paródia hiper-realista de uma maternidade afunilada pela lógica das redes? Por que se estranha a mãe reborn e nem tanto aquelas postando cada suspiro de seus filhos “reais”? A qual realidade estão sujeitas as crianças continuamente compartilhadas na timeline de seguidores? Esta abordagem é crítica ao fenômeno reborn e a ela me associo.
A segunda abordagem, a psicológica, aponta os aspectos positivos do bebê reborn, com pequenas ressalvas, como faz a psicóloga Rosana Cibok. Diz textualmente: “É importante destacar que os comportamentos associados aos bebês reborn não devem ser automaticamente patologizados. A psicologia busca compreender o contexto e o significado dessas ações na vida da pessoa. Quando esse vínculo com a boneca oferece alívio, conforto ou simboliza um processo de cura, ele pode ser visto como uma forma de enfrentamento adaptativo. Entretanto, se o uso do bebê reborn impede o indivíduo de estabelecer vínculos reais, se isola excessivamente da realidade ou representa uma recusa de lidar com perdas reais de forma saudável, pode haver indicativos de sofrimento psíquico que merecem atenção.” Psicólogos ainda temem, em grande maioria, da qual minha prima psicóloga é exceção, criticar os bebês reborn. Sociólogos não.
Na verdade, todo mundo fez sua interpretação, prova de que, de fato, a imagem do bebê incomodou muita gente. Surpreende-me que até o campo do direito sinta-se incomodado com as bonecas. O advogado Bruno Amaro cita casos em que casais reivindicam o direito de constituir uma família simbólica com os bebês reborn, o que implica em regular a guarda de uma boneca. “Advogados de diversas regiões do Brasil relatam um aumento significativo na procura por orientação e atuação em casos que envolvem bebês reborn, especialmente em processos de divórcio e direitos sucessórios. Em algumas situações, as bonecas são consideradas bens afetivos, gerando discussões complexas sobre guarda, posse e até inventário.” Não há o que não haja.
O que as bonecas reborn escondem?
Entendo que não estamos abordando todo o campo de mercadorias incluídas no problema. As bonecas reborn são, na minha visão, a face visível das love dolls. O Vale das Bonecas é maior do que você imagina. Também chamadas de silicone dolls ou real dolls, segundo Christine Greinere e Beatriz Yumi Aoki, as bonecas sexuais ou love dolls japonesas também revelam relacionamentos que vão além da prática sexual, como os relacionamentos das mães de bebês reborn vão além das práticas da maternidade. O que ambos têm em comum é o fato de serem uma forma de homens e mulheres lidarem com a sua própria solidão a partir de bonecas realistas, bebês ou mulheres. Tanto bebês reborn como love dolls são tratados como companheiros, peças presentes em momentos de lazer, objetos para fotografias, possuem maquiagem que torna o silicone de que são feitas a imagem de um ser real. À sua maneira, cada um é um objeto de amor. De mulheres, para expressar um amor maternal; de homens, para expressar um amor sexual. Mas é claro que tanto os bebês reborn podem atender à fantasia de homens como há, é claro, love dolls masculinos para mulheres. Há também uma similitude na transferência de ritos humanos para estes objetos, já que empresas no Japão passaram a organizar funerais para love dolls, da mesma forma como empresas no Brasil também a realizam. Em ambos os casos, estamos diante de modos de lidar com afetos por seres inorgânicos, o que se alinha a questões de gênero, epistemologias da comunicação e do corpo e também a uma forma sintomática de experienciar a subjetividade.
As autoras do estudo sobre love dolls trazem informações interessantes para comparar com os bebês reborn, a pesquisa de campo que realizaram no Japão entre 2019 e 2020. De fato, bonecos e outros objetos são produtos de estimação no mundo inteiro, e Jean Baudrillard, em A sociedade de consumo (Edições 70, 1996), já apontava para seu significado no seu amontoamento e profusão que é atualizado na imagem das coleções de bebês reborn que determinadas pessoas possuem e que revela, segundo ele, “a evidência do excedente, a negação mágica e definitiva da rareza, a presunção materna e luxuosa da terra da promissão” (p. 16). Ainda que mais raro pelo seu custo, vídeos na internet mostram casais com mais de duzentas love dolls. Segundo Baudrillard, tais condutas aparentemente dirigidas para a obtenção de prazer correspondem a uma finalidade muito diferente: “a da expressão metafórica ou desviada do desejo, a da produção por meio de signos diferenciais de um código social de valores. Não é determinante a função individual de interesse através de um conjunto de objetos, mas a função instantaneamente social de troca, de comunicação e de distribuição dos valores através de um conjunto de signos. A verdade do [seu] consumo reside no fato de ela não ser função de prazer, mas função de produção – e, portanto, tal como acontece com a produção material, função que não é individual, mas imediata e totalmente coletiva” (p. 78).
Assim, não se trata apenas de mulheres e homens que buscam suprir carências em objetos, sejam bebês reborn ou love dolls, mas um sintoma da transformação do sentido da mercadoria em nossa época. A coação ao prazer deu um passo a mais no sentido dado também por Byung-Chul Han: “a nova ética capitalista nos diz que não devemos nos esquivar do prazer que oferecem estes objetos, ao contrário, [eles fazem parte] de um sistema que nos lembra com insistência nosso direito de brincar com eles, satisfazer nossa curiosidade universal por tais brinquedos, pois importa experimentar tudo, porque o homem do consumo encontra-se assediado pelo medo de falhar ‘qualquer coisa’, de não obter seja que prazer for” (Baudrillard, p. 81). O imperativo “Goze”, de que fala Slavoj Zizek, impõe-se cada vez mais.
Novos objetos de desejo
Estamos cada vez mais nos relacionando com novas materialidades. De fantasmas a hologramas, passando por programas ou personagens digitais, tanto bonecas reborn como as love dolls fazem parte desse universo de consumo de mercadorias que agora assumem o papel de companhia a objetos de desejo, amor e amizade. Isso não significa declarar guerra às bonecas, mas reconhecer seu lugar e função. As bonecas, sejam infantis ou sexuais, têm uma longa história. As bonecas reborn têm sua origem nas primeiras bonecas conhecidas que remontam à civilização babilônica, com seus braços articulados feitos em alabastro, seja para assumir um caráter mágico ou simplesmente para a criança morta brincar em um além-túmulo. De brinquedos da infância a objetos de culto, elas tinham um lugar nas cenas rituais, seja de passagem à vida adulta ou ao além.
As bonecas se transformaram quando tomaram a forma mais humana na Holanda do século XVII, quando foram feitas bonecas com olhos de vidro e peruca com cabelo humano. É quando se vê nelas essa espécie de duplo do humano. Enquanto isso, love dolls são citadas na literatura japonesa desde o século XVII. Dizem Greiner e Aloki que “[um] conto trazia a história da jovem moça Komurasaki, que se apaixona pelo funcionário de uma loja administrada por seus pais, chamado Gensuke, que também se apaixona por ela. O romance, entretanto, é rapidamente condenado ao fracasso: os dois são forçados a se separar, e os pais de Komurasaki a casam com outro homem escolhido por eles, deixando-a de coração partido. Na noite de núpcias, Gensuke aparece como um fantasma em formato de um demônio com chifres, assustando o novo marido. Ao contar do ocorrido para os pais da jovem, eles têm a ideia de produzir uma boneca com a aparência da filha, equipada com a cópia de uma vagina (azuma-gata) para distrair o fantasma. À noite, o homem, acompanhado da boneca, espera por Gensuke no quarto, que reaparece decidido a matar o rival. Entretanto, ao ver a boneca, Gensuke sente uma atração sexual incontrolável e, tomado por essa paixão, esquece o assassinato e nunca mais retorna. Na história, a boneca é vista como instrumento de apaziguamento, substituindo o desejo de um homem frustrado e, de forma inédita, é ‘utilizada explicitamente como parceira sexual’”.
Assim, as autoras apontam a origem das bonecas sexuais no azuma-gata, espécie de instrumento que serve para a masturbação de homens cujos registros datam de 1686, por meio do livro Koushoku Kinmô Zui (Coleção de imagens eróticas para esclarecer a juventude), da artista Hanbei Yosh. Elas afirmam que “dentre os objetos representados, há o de ‘uma bainha alargada, provida de uma grande boca ovoide, dividida por uma abertura por cima da qual há algo que parece um capuz de clitóris’. Junto à imagem, há três caracteres: 吾 (a), que significa eu, a si mesmo; 妻 (tsuma), esposa; e 形 (kata), que diz respeito à forma, formato. A leitura desses caracteres reunidos forma a palavra azuma-gata, que pode ser compreendida como “a forma de minha esposa”. Assim, o azuma-gata é visto, portanto, como o ancestral das bonecas sexuais de hoje. Se no passado, surgiram como espécie de objeto de sexualidade de compensação, também significavam tristeza pela ausência da esposa que o objeto personifica, mais do que uma maneira de obter prazer. É o símbolo de uma distância que desejamos abolir”, exatamente o contrário das bonecas atuais, que estabelecem uma distância entre seu proprietário e o Outro, seja criança ou companheira.
A boneca que preenche uma ausência
Esta falta, ausência, não é da mesma natureza das bonecas reborn ou das love dolls? Ambas, em sua origem, querem representar a ausência de um amor, seja o filial ou do parceiro sexual. Mas é claro, no capitalismo tudo recicla e hoje as autoras citam a presença das love dolls no mercado contemporâneo através da Orient Industry, a indústria pioneira em sua fabricação, ainda que hoje sejam vendidas por diversos fabricantes em blogs e showrooms de sex shops. “Há uma estimativa da Orient Industry de que cerca de duas mil bonecas são vendidas por ano no país. A primeira boneca lançada pela empresa foi Hohoemi, em 1977. A cabeça e os seios foram feitos de plástico rígido, e o torso e as pernas, de material inflável. Fazia-se necessário, portanto, enchê-los de ar. A pélvis, para suporte às relações sexuais, era reforçada por um bloco de uretano. Capaz de aguentar o peso de um corpo de até 80 quilos, as principais novidades que a boneca trazia eram a solidez de parte de sua estrutura e a durabilidade, buscando romper com a ideia das bonecas infláveis existentes até o momento, que eram frágeis, deterioravam-se rápido e, de acordo com os usuários, não eram fisicamente atraentes. Hohoemi foi vendida, na época, por 38 mil ienes, de acordo com a Orient Industry em 2017. A partir de 1982, as bonecas passam a ser produzidas em látex, apresentando como inovação um corpo inteiramente sólido, o que fez o preço subir para 158 mil ienes. Em 1997, são lançadas as Irmãs Hanami, uma nova proposta da empresa que explorava uma aparência física mais jovial e colorida, agora apresentadas em três versões: Mika, Yuuka e Ayaka. Feitas de látex e plástico, eram comercializadas por 240 mil ienes. Em 1999, são lançadas love dolls em plástico, oferecendo maior facilidade na limpeza, cuidados e diminuição nos custos de produção, reduzidos então para 168 mil ienes. No ano de 2001, surge a Jewel, a primeira boneca sexual japonesa feita em silicone – já existente no mercado estadunidense desde 1997 com a empresa Abyss Creations e suas real dolls (bonecas reais ou bonecas de verdade, tradução nossa). Após um período de pesquisa e desenvolvimento, ela passou a ser vendida no Japão por 560 mil ienes. Desde então, surgiram novos modelos até chegar ao catálogo atual. Hoje, as bonecas são vendidas por cerca de 480 a 700 mil ienes, preços que variam de acordo com a personalização selecionada pelo cliente. Há quatro opções base para escolha, que se diferenciam por um determinado padrão de aparência física: Yasuragi, Ange, Jewel e Berry. A partir desta primeira seleção, fica ao critério do comprador decidir sobre o formato do corpo, a cor da pele, o tamanho dos seios, a cor dos mamilos, a cabeça, a possibilidade de movimentar os olhos, a flexibilidade dos dedos e a quantidade de pelos pubianos. A empresa possui um showroom e disponibiliza visitas sob reserva, que duram em média 20 minutos, para que os clientes e as pessoas interessadas possam analisar as bonecas pessoalmente. Não há dados de vendas no Brasil, ainda que elas estejam presentes nos principais sites de varejo. É a mulher perfeita para o homem solitário, exceto por um detalhe: ela não possui alma.
Da boneca, passando pelo bebê reborn e desta à boneca sexuada, evoluímos de brinquedos destinados às crianças a partir dos fantasmas dos adultos, para brinquedos destinados a adultos a partir dos fantasmas das crianças. A criança tinha sua boneca para imaginar uma vida adulta; o adulto tem seu bebê reborn ou love dolls para ocultar o vazio da maternidade ou da sexualidade. O lugar da mãe e do pai sempre impressionou a psicanálise, assim como o lugar do sexo. Esses bonecos reborn e love dolls, ao contrário dos antigos brinquedos, falam da totalidade da nossa civilização. Agora, a relação de amor de uma mãe por sua filha ou de um homem por uma mulher é como qualquer outra coisa, faz parte da sociedade de consumo “regulada por um processo de simulação e restituição” (Baudrillard, p. 158). Eles fazem parte dessa mesma vertigem artificial de realismo que já está presente em outros veículos, como nossas TVs 8k, nosso som sem ruídos e tudo que quer simular para nós a perfeição. Bobagem! A boneca sexuada só é o equivalente do sexo enquanto brinquedo de manipulação infantil, como a boneca reborn é o equivalente da maternidade enquanto brinquedo e representação familiar. “É necessário ter já dissociado a sexualidade como totalidade, na sua função simbólica de permuta total, para poder circunscrever nos signos sexuais (órgãos genitais, nudez, atributos sexuais secundários, significação erótica generalizada de todos os objetos) e os adscrever ao indivíduo como propriedade privada ou como atributos (Baudrillard, p. 159). Não existe nada perfeito. Não há como um objeto reproduzir uma relação humana. É preciso arcar com as dores da vida. Isto nos faz adultos.
O papel simbólico das bonecas
Bonecas tradicionais cumprem sua função simbólica na infância. Quando adultos compartilham seus afetos com bebês reborn, eles recusam a significação simbólica, substituindo-a por uma significação realista: eles acreditam que a boneca é seu filho, assim como acreditam que a love doll é sua mulher. Entendo que isto nada mais é do que uma prática similar ao consumo de drogas, como faziam as personagens do filme Vale das Bonecas. O uso destas “bonecas” produz um desvio de sua função original e, por isso, nos seduzem (Baudrillard), mas não deixam de ser parte do pensamento obsessivo-compulsivo ou de uma ideia delirante de maternidade ou sexualidade. Minha posição é crítica: entendo que elas alimentam nossa neurose coletiva e os psicólogos deveriam se preocupar, não com os méritos de tais bonecas para a preservação da saúde mental daqueles que fazem seu uso, mas pensar nelas como um novo capítulo de uma nova forma de toxicomania e, portanto, da história da psicanálise. Se love dolls e bonecas reborn nos chamam a atenção, é devido ao fato de que provocam o mesmo mal-estar de que fala Freud, de que predomina a estratégia, mais ou menos aceita, de que podemos obter com objetos ou substâncias energia para suportar a dor da civilização. Enquanto usamos bonecas para prevenir o sofrimento da vida civilizada, ocultamos o fato da causa dos efeitos da própria no capitalismo. Hoje, é uma forma cínica de tratar o desejo, saída sublimatória de uma falta ou gozo negado. Presos a produtos e mercadorias do capital – sim, esta é uma análise de sociologia simbólica – buscando a satisfação incondicional de suas necessidades, as pessoas ficam presas ao que adere à sua libido. A boneca sexuada, nesse sentido, tem a mesma natureza do boneco reborn, é uma saída masturbatória – numa real, noutra simbólica. É, portanto, um modo de satisfação autística, solitária, incapaz de fazer ver a condição em que o sujeito se encontra, a de miséria simbólica.
Em Da Miséria Simbólica (Orfeu Negro, 2018), o filósofo Bernard Stiegler fala desse desejo que se tornou subalterno em relação aos imperativos da produção capitalista, com consequências destrutivas para a individualização psíquica e coletiva. Em sua visão, o mercado e as novas tecnologias, e consequentemente, suas novas mercadorias, criam um contexto de apropriação do campo simbólico pelo empobrecimento das experiências subjetivas e estéticas. Não nos iludamos: as bonecas reborn e as love dolls fazem parte desse campo de batalha estético-econômica em andamento: pensamos que as bonecas são apenas um mal necessário à solidão de algumas pessoas. Na verdade, elas são parte da transformação da experiência estética – no sentido ampliado e que inclui os afetos – em uma questão política. A questão política é como sentir em comum com o outro, sentir em conjunto, produzir a simpatia. Somos uma sociedade que caminha para a perda da empatia. Isto não é já notável pelos massacres de Gaza e a pobreza de nossas ruas? “Isso não é suficiente para o capital, é preciso mais”, diz o capitalista. O político é exatamente isso, saber como viver com os outros e suportar nossa dor. “Estar junto é ser um conjunto sensível. Uma comunidade política é então a comunidade de um sentir. “(p. 18).
Quando consumimos bonecas reborn ou love dolls, não partilhamos experiências em comum, são homens e mulheres que já não se sentem pertencentes à sociedade porque construíram para si uma zona afetiva própria, sua catástrofe político-estética particular. O condicionamento estético constitui o essencial do fechamento nessas zonas, acaba por substituir a experiência estética para tornar-se impossível. É o que engendra uma perda de participação simbólica, que é também uma espécie de congestão simbólica ou afetiva. A libido é captada e canalizada. Com a expressão “miséria simbólica”, diz Stiegler, “entendo a perda de individuação resultante da perda de participação na produção dos símbolos e suponho que o estado só conduza a um desabamento simbólico, isto é, um desabamento do desejo”. Como diz Jean-Pierre Lebrun em A perversão comum: viver juntos sem outro (Cia de Freud, 2008), Lacan estava certo em 1968 quando previu o futuro como o da criança generalizada “em outras palavras, uma época em que permanecer criança nada teria de repreensível, seria até, ao contrário, implicitamente favorecido”. Os bebês reborn e as love dolls estão aí para dizer que esta época chegou.
Todos os textos de Jorge Barcellos estão AQUI.
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