A insegurança e a imprevisibilidade jurídica cresceram ainda mais no Brasil, com recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em processos tributários, que abala até mesmo a força da coisa julgada, sem a necessidade de ação rescisória, relativizando-a de uma forma que pode gerar muitos prejuízos a quem de boa-fé travou demoradas e caras batalhas jurídicas, planejou sua vida e seus negócios confiando na imutabilidade de uma decisão jurídica. Isso poderá afetar até mesmo a percepção de investidores de outros países em projetos ou empresas no Brasil.
O que foi decidido naqueles processos tributários com relação a coisa julgada foi uma questão processual e, portanto, essa relativização da coisa julgada poderá ser determinada pelo STF em processos que tratam sobre outros assuntos também, referentes a diversos ramos do direito. Esse entendimento poderá se repetir em diferentes temas.
Imagine se houver o julgamento definitivo sobre algum outro tema, e as pessoas beneficiadas por aquela decisão conduzirem suas vidas e negócios baseados nesse julgamento, e depois o STF mudar o entendimento sobre o assunto, e tudo o que elas fizeram, sem a necessidade de uma ação rescisória para desconstituir a decisão judicial, pode estar prejudicado, poderá vir a ser anulado. Isso pode lhes causar imensos prejuízos, quem sabe até mesmo o dever de indenizar terceiros ou quem se beneficiar do novo entendimento jurisprudencial do STF, sem necessidade de uma ação rescisória. E se depois, disso tudo, o STF mudar de entendimento novamente, e voltar a entender como antes? Dá para imaginar o impacto dessa decisão jurídica para quem tem de planejar sua vida ou seus negócios com base em decisões judiciais que podem ser rescindidas sem o ajuizamento de uma ação rescisória?
Outrossim, quem, em sã consciência, quer tomar decisões baseadas em decisões jurídicas que podem a qualquer momento serem revistas, ou investir em um país em que as decisões judiciais demoram anos e, mesmo quando protegidas pela “coisa julgada”, instituto jurídico que existe na maior parte dos países, podem mudar a qualquer tempo, com grande prejuízo para os anteriormente beneficiados pela decisão que deixou de valer? Isso é coisa que muitos poucos povos aguentam, a justiça não pode ser tão imprevisível e sujeita a reviravoltas. Está muito difícil ser brasileiro.
O que é coisa julgada
Vale esclarecer que a “coisa julgada” para alguns doutrinadores é um efeito da sentença, para outros a imutabilidade dos efeitos da sentença, e para uma terceira corrente é uma qualidade do conteúdo da sentença. Quando me formei, em 1990, a corrente “do efeito da sentença” era a que prevalecia. No entanto, o atual Código de Processo a define coisa julgada material como “a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”.
Para quem não é do meio jurídico possa entender melhor o que á a coisa julgada, vale informar que para o atual Código de Processo Civil (CPC) existem além da coisa julgada material acima definida, mais três tipos de coisa julgada, a coisa julgada formal, a coisa julgada sobre questão prejudicial, e a coisa julgada sobre tutela antecipada antecedente, que gera bastante polêmica
A coisa julgada formal é um fenômeno interno que ocorre no processo quando há uma última decisão final imutável, em geral decorrente de requisitos ou pressupostos processuais.
A coisa julgada sobre uma questão prejudicial, que nada mais é do que pontos que precisam ser avaliados e valorados pelo juiz, antes de decidir o mérito de uma determinada ação, como, por exemplo, antes de decidir a partilha de bens, avaliar se determinada pessoa é herdeiro ou não daquele que deixou a herança. Essa decisão, sobre uma questão prejudicial, de acordo com o CPC também se sujeita à autoridade da coisa julgada, tornando-se imutável e indiscutível em processos futuros.
A coisa julgada sobre a tutela antecipada antecedente ocorre quando houver a concessão da tutela requerida, e essa decisão não for impugnada pelo recurso processual cabível, continuando assim a produzir seus efeitos, mesmo após o término do processo e, decorridos 2 (dois) anos da ciência da referida decisão não tiver sido proposta uma outra ação com a finalidade de “rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada”. Esse fenômeno, chamado de estabilização da tutela antecipada, é entendido por muitos como uma outra forma de coisa julgada, embora o CPC estabeleça que a “decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes”, no prazo de 2 (dois) anos, contados da ciência da decisão que extinguiu o processo.
De acordo com o atual CPC, para rescindir uma decisão de mérito transitada em julgado seria necessária a interposição de uma ação rescisória, cabível nas seguintes hipóteses:
I – se verificar que a decisão foi proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;
II – foi proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente;
III – resultou de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
IV – ofendeu a coisa julgada;
V – violou manifestamente norma jurídica;
VI – foi fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória;
VII – obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;
VIII – foi fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.
O direito à interposição da ação rescisória se extingue em 2 (dois) anos contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo, sendo que se a ação for fundada na obtenção pelo autor, posteriormente ao trânsito em julgado de prova nova cuja existência ignorava ou não pôde fazer uso, capaz de por si só lhe assegurar pronunciamento favorável, o prazo será a data de descoberta da prova nova, observado o prazo máximo de 5 (cinco) anos, contado do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo. Portanto, havia uma relativa segurança jurídica com relação a coisa julgada no Brasil.
Da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF)
No dia 08 de fevereiro recente, foi decidido pelo STF, em dois recursos extraordinários (Res), que os efeitos de uma sentença definitiva (transitada em julgado) em matéria tributária de trato continuado perde seus efeitos, de forma imediata, quando há julgamento em sentido contrário pelo STF, sem a necessidade de uma ação rescisória.
Cumpre esclarecer que por meio de dois REs, a União recorreu de decisões que, na década de 1990, consideraram inconstitucional a lei que instituiu a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e deram a duas empresas o direito de não recolher o tributo. A União alegou, em síntese, que a cobrança do tributo poderia ser retomada, uma vez que em 2007 houve o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 15, em que o STF declarou a constitucionalidade da lei que instituiu a contribuição
Amenizando um pouco a situação, no julgamento do “RE 955227 (Tema 885) e RE 949297 (Tema 881), de relatoria dos ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, respectivamente, o colegiado, por maioria, também considerou que, como a situação é semelhante à criação de novo tributo, deve ser observada a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou, no caso das contribuições para a seguridade social, a anterioridade de 90 dias.”.
Consoante informado no portal do STF, “em relação ao marco temporal, prevaleceu o entendimento do ministro Barroso de que, a partir da fixação da posição do STF em ação direta de inconstitucionalidade ou em recurso extraordinário com repercussão geral, cessam os efeitos da decisão anterior. Seguiram essa corrente os ministros Gilmar Mendes, André Mendonça, Alexandre de Moraes, e as ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber (presidente).
O ministro Edson Fachin, que defendia a cessação dos efeitos a partir da publicação da ata desse julgamento, ficou vencido, juntamente com os ministros Ricardo Lewandowski, Nunes Marques, Luiz Fux e Dias Toffoli, que retificou o seu voto quanto ao marco temporal.”.
Assim foi fixada pelo STF a seguinte tese de repercussão geral:
“1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.
2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.”.
Sob o ponto de vista tributário, até entendo a posição STF sobre a incidência dos tributos nas obrigações de trato continuado. Minha preocupação, no entanto, é com a possibilidade de uma sentença transitada em julgado perder seus efeitos de forma imediata, sem a necessidade de uma ação rescisória, e fora do prazo previsto em lei para que se possa rescindir uma decisão definitiva. Isso é uma tremenda inovação, e se aplicada a outros julgamentos, em outros ramos do direito, pode gerar muitos problemas.
Gostei muito das palavras do Ministro Luiz Fux, no Sindicado de Contabilidade, proferidas em palestra no dia 10 de fevereiro. Como sempre ele foi preciso e direto ao ponto:
“Nós tivemos uma decisão que destruiu a coisa julgada. Chegamos a uma decisão que criou a maior surpresa fiscal para os contribuintes. Nós tivemos uma decisão com risco sistêmico absurdo, porque foi uma decisão genérica que se aplica a todos os tributos. Não foi só uma decisão sobre o…o…. a Contribuição Social sobre o Lucro. Foi uma decisão que vai… ela vai pegar tributos, ela pode pegar coisa julgadas de todas as naturezas. Então aquilo me incomodou muito, porque eu tive uma formação muito sólida. E nessa formação sólida sempre se dizia que na catedral do direito, no altar-mor está a coisa julgada. Porque a coisa julgada ela não tem compromisso com a justiça ou com a verdade. A coisa julgada tem compromisso com a estabilidade e a segurança social. Num dia tem de ter uma decisão definitiva. Agora se a gente relativiza a coisa julgada, vale a segunda, e não vale a primeira, por que não a terceira? E a quarta e quinta? E quando é que nós vamos ter a segurança jurídica?”