Será que as inteligências artificiais (IAs) irão libertar os humanos para viver o tão sonhado ócio criativo? Tem que se dizer que esse sonho é milenar. Desde que Adão e Eva foram expulsos do Jardim das Delícias, os humanos vivem entre um regime de trabalho brutal e uma migalha de tempo para desfrutar os prazeres da vida — com exceção dos ultrarricos e outras oligarquias de poder extremo.
A diferença entre um robô-mecânico e uma IA é que o primeiro automatiza os processos para chegar a um determinado objetivo (um fim já conhecido). Já a IA não só aprende ao longo do processo de interação com um humano como tem liberdades nos processos de tomada de decisão antes de agir, ou seja, não há um objetivo a ser alcançado (não há um fim pré-definido). A IA pensa, pondera as alternativas e decide por si.
Em 1934, um médico relata um sonho, um sonho de terror: “Depois da consulta, pelas nove da noite, quando quero estender-me tranquilamente no sofá folheando um livro sobre Matthias Grünewald, minha sala e minha casa de repente ficam sem paredes. Olho espantado ao redor e todas as casas, a perder de vista, não têm mais paredes. Ouço um alto-falante berrar: ‘Conforme o decreto sobre abolição das paredes do dia 17 do corrente mês…’” (Koselleck, 2009 [1979], p. 252).
O regime infocrático, tão temido por alguns grupos de pesquisadores, é uma onda que já é vista como um movimento crescente no horizonte. As big techs (Alphabet, Amazon, Apple, Meta, Microsoft) já estão se posicionando. Do PL das Fake News até as Big Five, todos se movimentam, pró e conta — fora os ausentes dessa discussão. Como o pesadelo do médico alemão, as paredes da privacidade já não existem mais.
Defender a privacidade é como defender um passado mofado. E quando a defesa da privacidade é defendida junto a defesa da liberdade irrestrita do mercado e junto ao direito da liberdade de comunicação sem fronteiras: é no mínimo esquizofrênico.
Por um lado, estamos sendo invadidos por todas as paredes e poros por algoritmos, IAs, robôs e outros sistemas. O espaço digital já invadiu nossas vidas. E esse tsunami digital é inevitável. Não é possível retornar ao passado dos homens das cavernas e nos tornarmos silvícolas novamente. Por outro lado, o nível de automação de trabalhos realizados até então somente por humanos passam a serem assumidos por esses seres artificiais sapientes e consequentemente se abre a oportunidade para uma transformação profunda e radical da forma como vivermos em sociedade. Além da evidente necessidade de reposicionar os atuais trabalhos (forçados) dos seres humanos por outros mais dignos. Será que cabe discutir uma redistribuição social?
A discussão pode ficar no plano escatológico-apocalíptico ou pode ir para o plano dos sonhos utópicos possíveis. Entre o imaginável e o factível há um espaço material a ser mediado. A negociação não é mais sobre termos ou não liberdade, é sobre nos reorganizarmos como dignos, e merecedores, de sermos seres humanos. Nessa vertente uma questão se coloca: afinal, o que faz do humano um humano? Sua capacidade de pensar? Lógica? Racionalidade? Sua capacidade de trabalhar habilmente? Sua inteligência? Consciência de si?
Após a Revolução Industrial (1750 – 1850), a tecnologia avançou tão rápido que o sonho iluminista de que as máquinas iriam libertar os seres humanos do trabalho pesado aflorou. Mas a realidade se impôs e após 150 anos de avanços tecnológicos (biogenética, computação quântica, nanotecnologia etc.) o número de pessoas em situação de fome no planeta está na casa do 1 bilhão de seres humanos e no Brasil são quase 20 milhões de pessoas (leia aqui). Não é pouco, aliás o número é assustadoramente alarmante frente à passividade e permissividade das oligarquias em posição de reverter a situação.
A Revolução Digital (do novo milênio, acelerada a partir dos anos 2000) pode ser um evento-chave nesse sonho. Talvez não sejam as IAs que irão libertar os humanos do trabalho bruto, da fome e dos sistemas de opressão. Pode ser que a porta de fuga esteja no próprio ser humano. O medo de sermos mais aprisionados, ou seja, oprimidos também pelas IAs e outros sistemas autômatos (como drones militares com capacidade de tomada de decisão autônoma e de destruição) pode ser o elemento que liberte os humanos do seu modo de viver destrutivo e opressor com o outro. É no mínimo instigante refletir sobre como, por exemplo, as religiões que pregam tolerância, amor e perdão são utilizadas para justificar todo tipo de barbárie atualmente. Será que a nova religião digital será utilizada para aumentar o nível de barbárie ou atingirá um ponto limite que irá causar uma catarse humanitária?
O futuro não está em um passado inatingível, mas um presente ancorado no próprio presente. A máxima ‘o futuro é agora’ nunca foi tão significativa. A capacidade de inteligência, lógica, racionalidade, automação e consequentemente aumento das desigualdades sociais só aumenta(rão) sob o regime digital, seja controlado por grupos que detém o novo ouro (dados), ou pela nova classe social: as IAs sapientes.
Já é conhecido o resultado de como é viver sob um regime neoliberal extrativista rentista: guerras, pestes, fome, eventos climáticos extremos e aumento da desigualdade social. As desigualdades ecológicas, econômicas e sociais persistem e não é por falta de recursos financeiros nem de conhecimento acumulado humano. Alguns exemplos: a megacorporação BlackRock possui ativos na ordem de US$ 10 trilhões e se fosse um estado-nação seria o segundo maior PIB do planeta. As Nações Unidas são compostas por 193 países membro, porém são uma ilusão de ótica em termos de eficácia — basta refletir sobre o evento da pandemia de coronavírus e a distribuição desigual das vacinas aos países mais vulneráveis e pobres ou sobre a “inevitável” guerra entre Rússia e Ucrânia.
Em um regime de IA-sapiência talvez haja uma saída. Pode ser que a inevitável nova ordem digital leve a humanidade a uma catarse moral global. Talvez não.
— “Conforme o decreto sobre abolição do trabalho humano do dia 05 do mês corrente, todo ser humano deve viver o ócio ou… ”, disse a IA-regente.
Leituras pós-apocalípticas
- Berardi, Franco. Depois do futuro. São Paulo: Ubu, 2019.
- Han, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. São Paulo: Vozes, 2022.
- Koselleck, Reinhar. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Ed. PUC-Rio, 2006 [1979]
Foto da Capa: Bradley Hook / Pexels