A cena parece de filme, mas é realidade. Um Guapuruvu centenário, uma das árvores mais altas da cidade de Porto Alegre, verde, saudável e imponente, tombando lentamente ao som da voz das pessoas que, incrédulas, gravavam esse crime.
“Não é possível!!”, a mulher grita. Chorei em todas as vezes que esse vídeo passou pela minha timeline do Instagram, e não foram poucas. Desde que compreendi o motivo da derrubada dessa árvore, as lágrimas se misturam com um sentimento de raiva: sua derrubada foi autorizada pela prefeitura para a construção de um conjunto de apartamentos que terá o elegante nome de “Verdant”, que em Português significa verdejante. Como dizem por aí: enfim, a hipocrisia. Derrubar árvores para construir uma edificação que se chamará verdejante?
Não, não é possível. Não é possível que em 2024, dias depois das enchentes históricas que assolaram o Rio Grande do Sul e do quanto se discutiu, em função disso, a questão climática como ponto nevrálgico do massivo desequilíbrio meteorológico e suas consequências progressivas, derrubem uma árvore alta e saudável para substitui-la por mais concreto.
Não é possível que em 2024 uma chamada bancada evangélica do Congresso Nacional Brasileiro esteja tentando aprovar um projeto de lei que cria uma legislação ainda mais punitiva e restritiva para o aborto no Brasil, criminalizando mulheres e adolescentes nos pouquíssimos casos que este procedimento ainda era garantido por lei. Uma jovem violentada precisa levar a cabo uma gestação com todos os riscos físicos e psicológicos porque vivemos num país cristão? A religião parece dominar essa discussão e nesse momento eu pergunto, incrédula e emocionalmente exausta: é possível?
Parece que sim. Parece que o conceito de possível fica cada vez mais elástico, poroso, furado mesmo. Parece que a arrogância, ignorância e onipotência humana atingiram níveis que até então não se pensava. Parece que o valor da mulher e da vida – a verdadeira – não a de um embrião ou de um feto, está cada vez mais submetida aos interesses de uma sociedade machista e violenta, que vê na mulher um produto barato.
Está muito difícil ser mulher, brasileira e gaúcha nos últimos meses. Pergunto-me sobre a dose de realidade que somos capazes de suportar e quando tudo parece SU real, onde podemos encontrar abrigo? Onde refugiar o pensamento, a critica, a lógica e a ética, todas sufocadas sob os escombros da hipocrisia e do retrocesso? O real é um impossível que esqueceu de acontecer e por isso, ficamos com o que é possível para o bom e para o mau. Ao menos até pouco tempo era assim. Estávamos protegidos do impossível e do impensável porque não era viável que ele acontecesse. Não era. Agora, parece que é.
Muito se fala de castração em Psicanálise e do quanto é importante que esse conceito perca seu caráter erótico no sentido de uma lógica de órgão e assuma sua real dimensão estruturante no sentido de limite e segurança. Se o impossível e o impensável continuarem acontecendo dessa maneira bizarra, onde nos agarramos? Como pensar que em 2024 estamos discutindo pautas escandalosamente religiosas num país que se diz laico? Como assistir o impossível sendo filmado e amplamente exposto nas redes sociais como a derrubada de uma árvore por ganância e ignorância, ou uma atriz sendo contratada para em um júri, em uma sessão solene e legal, interpretar histericamente um feto clamando misericórdia a um Deus para não ser morto? Como sustentar nossos alicerces emocionais básicos de humanidade, ética e respeito à vida – a vida física e psíquica de uma criança, de uma adolescente ou de uma mulher – quando estamos sendo ininterruptamente soterrados de absurdo?
Eu não sei responder a essas perguntas, não sei o que será desse país daqui para frente. O pouco que eu sei é que se faz urgente buscar refúgio, anestésicos morais e sociais para tanto impossível vestido de projeto de lei. Somos um projeto humano sem lei ou que ao menos deturpou muito as suas leis originais. Tentei terminar esse texto de uma maneira positiva e esperançosa mas hoje, lamento. Não nos acovardemos e nem omitamos diante desse novo possível que desafia nossa lógica. Talvez entendendo que a partir de agora o absurdo também é possível, tenhamos que rever nossos conceitos de real. Talvez o surreal tenha que habitar nosso horizonte para habitarmos a realidade com novos olhos que enxerguem antes, com menos torpor e mais horror e indignação.
Um horror que assuste mesmo, que nos empurre. Eu, aqui, grito junto com a moça do vídeo: “Não é possível!!”, mesmo sabendo que é sim, mesmo sabendo que eu tento escrever para conter, mas nenhuma palavra é raiz suficiente nesses últimos dias para segurar um tronco inteiro quando é derrubado pela insensatez.
Foto da Capa: Paulo Pinto / Agência Brasil
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