Certa vez, Tocqueville afirmou no seu clássico A democracia na América: “Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia se produzir no mundo: vejo uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais que giram sem repouso sobre si mesmos para obter pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem suas almas. Cada um está como que alheio ao destino de todos os outros. […] Acima deles se eleva um poder imenso e tutelar, que se encarrega de lhes assegurar o prazer e zelar por seu destino. Assemelha-se ao poder paterno, mas fixa-os irrevogavelmente na infância” […].
Assim, parece que desde o século XIX já sabíamos que o futuro da democracia de massas seria esta atomização despolitizada dos indivíduos tornados cidadãos-crianças, e o filósofo francês contemporâneo, Jacques Rancière, leitor atento de Tocqueville, também acha que há um ATOR responsável pelo ódio à democracia: o consumidor obsessivo, imaturo, narcisista e hiper-individualista! E é por isso que Rancière diz da democracia que é o “[…] reino dos desejos ilimitados dos indivíduos da sociedade de massa moderna”. Mas o ATOR antidemocrático contemporâneo vai muito mais longe: para ele é este inconsequente respeito às diferenças, a affirmative action que destrói o universalismo republicano, estabelece o reino universal de uma igualdade ilusória, arruína hierarquias tidas como naturais e tradicionais (de saber, de status, de classe, de origem, de idade…) e que, resumidamente, se expressa numa tese: a boa democracia é aquela que reprime a catástrofe da civilização democrática, que se resume, por sua vez, num dilema: ou a democracia significa uma larga participação nas coisas públicas ou é uma forma de vida social que canaliza as energias para satisfações pessoais.
O fato é que, se o totalitarismo era o Estado que devorava a sociedade, na democracia é a sociedade que devora o Estado estendendo seus tentáculos para todo um modo de vida, das relações familiares às pedagógicas, profissionais, religiosas, amorosas, geracionais… Eis o grande risco da tirania democrática! E como, no fundo, não existe regime de governo que não seja oligárquico (todo estado é oligárquico!), então é preciso que as elites sejam protestantes, quer dizer, individualistas e esclarecidas, e o povo seja católico, quer dizer, compacto e mais crente do que consciente, como atesta o pensamento das elites do século XIX, de Guizot a Renan. E a ficção que alimentamos a respeito da soberania popular serviu apenas para alimentar as práticas da divisão do povo que os regimes representativos desempenham tão bem.
Uma palavra, aliás, e de grande atualidade entre nós brasileiros, resume este imenso imbloglio democrático: POPULISMO, que Rancière identifica com “todas as formas de secessão em relação ao consenso dominante”, que supomos estar assentado em um só princípio: a ignorância (de novo!) dos atrasados, a forte ligação com o passado (seja com ideais revolucionários ou com a religião tradicional). “Populismo é o nome cômodo sob o qual se dissimula a contradição exacerbada entre legitimidade popular e legitimidade científica” (quer dizer, de um saber, acima dos homens ordinários) revelando o grande e inconfessado desejo de toda oligarquia: governar sem povo! É praticamente unânime entre os autores que consultei, apontar para o populismo como a grande ameaça à democracia: o sociólogo argentino Ernesto Laclau, no entanto, achava que o termo não era de fácil definição, já que abrangia experiências muito diferentes (Narodnichevo russo, Farmers americanos, Cardenismo no México,Varguismo no Brasil, Poujadismo na França).
Todorov vê no Populismo um imenso risco à democracia, e enxerga nele algumas características comuns: demagogia (ao propor soluções fáceis como dar mais recursos à polícia!, jogar com as emoções do momento, limitando-se às certeza da maioria e lidando com o cotidiano de cada um, além de privilegiar a ordem em detrimento das liberdades. Populismo se oporia a elitismo, termo usado aqui com conotações pejorativas: é uma desforra da periferia contra o centro, diz Todorov. Entre nós, os uspianos Francisco Weffort e Otávio Ianni, autores de clássicos sobre o assunto, veem o populismo como uma relação direta entre o líder e as massas, sem a intermediação das instituições e com amplo uso de meios de comunicação (rádio, televisão e televisão) ou das redes sociais atuais.
No fundo, reina em tudo isto uma imensa vontade de eliminar a política (ou o Estado), coisa que já estava na cabeça dos nossos utopistas do século XIX, de Cournot a Marx: a política entendida como fonte de dissensões e discórdia entre os homens, aqueles homens partidos de Carlos Drummond, e substituí-la por uma tecnocracia.
A vitória final da GESTÃO sobre a ESFERA PÚBLICA, ou seja, o pote de barro democrático, no final, se estilhaça em pedaços!
Foto da Capa: Freepik AI-Generated
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