Nana Caymmi afirmou, certa vez, que a atual cena musical brasileira, com raras exceções, resume-se a “bunda e aeróbica!”. Ouvi, há alguns meses, duas entrevistas (com Cláudia Leitte e Ivete Sangalo) e lamentei o grau de futilidade dos depoimentos, rasteiros exercícios de narcisismo e de cumplicidade com a mediocridade musical de nossa época e, sobretudo, lamento a ausência daquilo que um hegeliano chamaria de “consciência estética”. Mas talvez fosse pedir muito!
Há quase 60 anos, Caetano e Gil lançavam o disco Tropicália ou Panis et Circensis, um disco e um movimento (efêmero!) que ousavam retomar uma ideia sugerida por Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago (1928), em que deveríamos, nós brasileiros, digerir cultura europeia para vomitar cultura brasileira: um vômito fusional, inspirado na “deglutição” do Bispo Sardinha, em Alagoas! Quando Caetano misturou denúncia debochada da cultura de massas com guitarra elétrica em “Alegria, alegria!”, o fato foi tão escandaloso quanto a frase de Gabeira quando voltou do exílio, dizendo – do alto de sua minúscula sunga! – que nossas esquerdas eram “moralmente vitorianas”! O que estava em jogo, naquele momento, era qual o papel que o artista – enquanto “consciência estética” – deveria desempenhar no “projeto nacional”. Chico Buarque, aos 23 anos, com “A Banda”, tentou nos advertir que a arte tem um poder limitadíssimo de transformação da realidade: uma vez que a banda tenha passado, tudo volta ao seu lugar, o mundo continua do mesmo jeito.
Havia, na mesma época, a Jovem Guarda que, tomando uma direção contrária às veleidades de “conscientização” e protesto do, por exemplo, “Mil vezes favela” (Nara Leão, Zé Keti), colocou o mercado musical em sintonia com a cultura de massas: ai que saudade das calças, do quepe, do anel “Calhambeque”: estávamos dando os primeiros balbucios de uma relação hoje tão comum, esta do desinvestimento político a serviço do consumo. Nossa época estava sendo aberta ali! Caetano não hesitou em afirmar que “revolucionário mesmo foi Roberto Carlos!”. Havia uma “consciência estética” por parte de alguns de nossos músicos, todos vindos de uma classe média ilustrada e dirigindo-se a esta mesma classe, consciência que reunia música e projeto político nacional.
Não sou a favor de que a música – e a arte em geral – tenha que necessariamente estar a serviço de qualquer projeto (nacional, ideológico ou partidário), mas acho que “bunda e aeróbica” são a expressão física da ausência de qualquer projeto.
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Foto da Capa: Reprodução do YouTube / Fit Dance