Eu não sei você, mas sou uma pessoa que trabalha movida por causas. Fazer por fazer, faço sempre que necessário. Mas a energia que coloco num trabalho, quando uma causa pela qual acredito está em jogo, tem uma qualidade diferente, melhor, flui.
Essa semana trabalhei por uma dessas causas. Anos atrás, de 2004 a 2009, fui voluntária numa Fundação, a FAESP, que acolhia egressos, homens e mulheres, do sistema penitenciário e fui testemunha da falta de solidariedade, vontade e estrutura do Estado e, por consequência, da sociedade em ajudá-los e inseri-los como cidadãos “aqui fora”. Desde 2016 atuo como voluntária no Prato Feito das Ruas, que trabalha com pessoas em situação de rua e em vulnerabilidade social, servindo em média 1700 almoços aos sábados, debaixo do Viaduto João Pessoa, no Centro Histórico de Porto Alegre. E quando não são acolhidos pela família ou não regressam ao crime, porque não encontram opção de “reinserção”, na rua é possível encontrar pessoas que saíram do sistema penitenciário.
E como sou uma mulher de muitas causas, não podia parar por aí. Além disso, escolhi para atuar profissionalmente a causa da longevidade e do envelhecimento, que estudo e trabalho desde 2014. Mas na medida em que fui me aprofundando, seus atravessamentos e interseccionalidade, a diversidade das velhices ficando cada vez mais clara, fui me dedicando nos últimos anos a questão de gênero, promovido rodas de conversas com mulheres. Acredito nessa potência das redes femininas. Do quanto precisamos nos fortalecer umas as outras. Fazer da sororidade uma ação prática.
Mas essa conversa a meu respeito está ficando longa demais…Conto tudo isso para que entendam porque foi importante ter participado da organização de um evento que tinha como objetivo reunir diferentes atores sociais que atuam pela transformação de vidas das pessoas egressas do sistema carcerário. Pela salvação de suas vidas para que não caiam na mão das facções criminosas. Num momento do mundo tão confuso e cheio de tristeza, falar de esperança e projetos de futuro é absolutamente transgressor, especialmente vindo de uma área como a segurança pública. Por que segurança pública?
Parece religião, mas, acredite, é segurança pública
Porque fortalecer emocionalmente, cognitivamente, socialmente, espiritualmente as pessoas dentro do sistema carcerário é enfraquecer as facções do crime e da criminalidade.
Porque interessa para a sociedade o bem-estar e o desenvolvimento das pessoas que estão cumprindo pena no sistema penitenciário, pois se elas conseguirem condições para o exercício da plena cidadania, ao retornar a sociedade, elas não retornarão ao crime, diminuindo os índices de criminalidade, esvaziando os presídios.
Assim, compreendendo que essas são políticas de segurança pública tanto quanto comprar armas, carros e sistemas de inteligência para as forças de segurança. Políticas com exemplos que dão certo, que foram apresentados neste evento. Um dos projetos vindo ali do Vale do Taquari, com 1% de reincidência! Ou seja, 99% de índice de sucesso!
O feminino
Como mulher, mulher que atua com mulheres e que luta pela equidade de gêneros, não pude deixar de me indignar com a fala de uma das painelistas, fundadora da Elas Existem, Carol Bispo. Fiquei absolutamente desacomodada quando ela trouxe o aumento de 567% de mulheres presas no período do ano de 2000 até 2014 no Brasil, e de que essas informações somente foram possíveis por conta do primeiro relatório nacional sobre a população penitenciária feminina do País, o Infopen Mulher, apresentado em novembro de 2015.
Se quem é minimamente informado sabe que o estado dos presídios brasileiros deixa muito a desejar, com as informações trazidas pela Carol, me contagiou uma sensação de alguém que vive numa bolha, pois ela contou que no Rio de Janeiro (em outros estados também) as mulheres apenadas (idosas, doentes, gestantes…) não possuem vaso nem papel higiênico, tendo que fazer suas necessidades biológicas no “boi”, ou seja, através de um buraco no chão. Ainda no Rio de Janeiro, base de atuação do Elas Existem, as gestantes ficam na unidade prisional Talavera Bruce, juntamente com todas as outras presas, possuindo a mesma alimentação e os mesmos horários, tal como a última refeição ser servida às 16h30 e a primeira às 7h. Ou seja, uma grávida que passa mais de 12 horas sem alimentação e sem cuidados básicos que qualquer gestante necessita. Nenhuma mãe e nenhum bebê deveriam passar por isso. Pra mim, mãe de duas filhas, com cuidados, alimentação, sono, medicação, confesso que me deixou altamente desconfortável.
Confesso que não sei o que fazer com a minha indignação. Então compartilhei com você, que talvez tenha alguma ideia ou possa fazer algo a respeito.
Sinto que algo a ser feito é com relação ao nosso sistema racista estrutural. Pois a grande maioria das pessoas em situação carcerária é negra. Ou seja, em uma sociedade com herança escravista que não promoveu a necessária reparação às barbáries ocorridas no período colonial, as pessoas negras permanecem numa posição de marginalização na sociedade, estando mais sujeitas à ação repressora da polícia e à criminalização, a partir dos desdobramentos no racismo que permanece produzindo efeitos até hoje.
E, como uma pessoa branca, acredito que o racismo é um problema nosso, a ser resolvido por nós que ainda não compreendemos o privilégio que possuímos, ainda não realizando a reabilitação devida.
Indo além, como mulher branca, envelhecida, de classe média, mesmo oprimida pelo sistema patriarcal e machista, percebo que há outros grupos de mulheres que possuem especificidades nas suas lutas que eu não sofro. São, por exemplo, as mulheres com deficiência, as mulheres negras, as mulheres lésbicas, as mulheres periféricas, as mulheres indígenas, as mulheres encarceradas etc. Todas podem ser articuladas e projetar identidades que sofrem opressões próprias originadas exatamente dessas intersecções. Assim, ações e políticas específicas geram opressões que irão produzir o desempoderamento desses (e outros) grupos.
Mas, assim como Angela Davis dizia que não basta não ser racista é preciso ser antirracista, penso que nós, mulheres com privilégios, podemos e devemos dar voz àquelas que menos voz tem na sociedade.
Nesse sentido quis saber mais a respeito dessas mulheres no cárcere, para poder compreendê-las melhor e trazer esse retrato delas aqui.
Por meio dos Artigos que encontrei no site do Elas Existem, encontrei o perfil de uma mulher negra jovem, solteira, com pouca educação formal, mãe, com filhos pequenos, que na maioria das vezes praticou crimes com finalidade econômica, ou seja, para colocar comida na mesa. Um terço delas está presa sem pena, aguardando julgamento, evidenciando sua classe socioeconômica.
Viver os primeiros meses de vida numa prisão é mais ou menos maléfico do que ser separado da mãe ao nascer?
Este dilema foi considerado por muitos psicólogos, pediatras e assistentes sociais antes de ser concluído que era melhor nascer preso do que nascer sem mãe. Em consequência, em 28 de maio de 2009, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 11.942, que assegurava às presidiárias o direito de um período de amamentação de no mínimo seis meses e cuidados médicos aos bebês e a elas. No entanto, a lei não foi acompanhada de meios para seu cumprimento. No que toca à infraestrutura das unidades que custodiam mulheres, dados divulgados em 2014 demonstram que menos da metade dos estabelecimentos femininos dispõe de cela ou dormitório adequado para gestantes (34%). Nos estabelecimentos mistos, apenas 6% das unidades dispunham de espaço específico para a custódia de gestantes. Já quanto à existência de berçário ou centro de referência materno infantil, 32% das unidades femininas dispunham do espaço, enquanto apenas 3% das unidades mistas o contemplavam. E apenas 5% das unidades femininas dispunham de creche, não sendo registrada nenhuma creche instalada em unidades mistas. Com a possibilidade de somente uma pequena parcela das crianças que vivem no sistema carcerário brasileiro estar alocada em unidades estruturadas especificamente para recebê-las, as demais moram em presídios mistos, com pouca ou nenhuma adaptação, em celas superlotadas, úmidas e malcheirosas, chegando até mesmo a dormir no chão com as mães. Apiedadas pelos filhos, muitas presas preferem devolvê-los à família ou entregar para adoção a vê-los vivendo em tais condições.
A situação das mães, e dos filhos
Como retratado anteriormente, pesquisadores estimam que por volta de 85% das mulheres encarceradas sejam mães. Quando detidas, seus filhos são distribuídos entre parentas e instituições. Só 19,5% dos pais assumes a guarda das crianças. Os avós maternos cuidam dos filhos em 39,9% dos casos, e 2,2% deles vão para orfanatos, 1,6% acabam presos e 0,9% internos de reformatórios juvenis. Vale lembrar que há legislação (Lei 13.257/2016, que dá nova redação ao art. 318 do CPP) na qual, para as mulheres gestantes ou com filhos de até 12 anos de idade incompletos, o juiz poderá substituir a prisão preventiva pela domiciliar. Para além do rompimento instantâneo da sua relação com os filhos no momento em que são presas, existem outros pontos subsequentes que impedem estes laços de serem minimamente retomados e fortalecidos. Mais de 70% das mães declararam não receber visitas de seus filhos, por razões diversas: decisão da própria presa por sentir vergonha de sua situação carcerária frente à família, a falta de condições financeiras e/ou tempo ou recusa de algum familiar em levar as crianças nos dias de visita, a alocação da presidiária em uma unidade prisional muito distante da casa onde morava com os filhos, a transferência de unidade para dar à luz a novos filhos.
Para os homens, há mães e companheiras. Para as mulheres, há solidão.
Dados coletados nos estabelecimentos penais femininos do Brasil revelam que 62% das mulheres presas não recebem nenhum tipo de visita. O isolamento é ainda mais nítido em visitas íntimas: apesar de em 70,59% destes estabelecimentos penais existir permissão para visita íntima, apenas 9,68% das presas recebem esse tipo de visitação. Além do abandono por parte do Estado, evidenciado na ausência de políticas públicas específicas, estas mulheres são abandonadas por suas famílias e por seus companheiros.
Se você leu até aqui, obrigada. Se você leu até aqui, espero que tenha saído com um sentimento de que essas mulheres, e homens, merecem dignidade nos locais para onde nós os enviamos e uma porta de saída para cidadania. Se você leu até aqui, espero que tenha saído com um sentimento de desacomodação, e assim como eu estou compartilhando com você, possa compartilhá-lo com mais alguém. Quem sabe, assim, a gente inicia algo?
Fontes:
Foto da Capa: Gláucio Dettmar/Agência CNJ