Nestes tempos difíceis em que a desigualdade social grita, a exploração dos recursos naturais aumenta e os fascistas insistem com suas ameaças nas estradas e em frente ao quartel do Comando Militar do Sul, quero registrar um momento de resistência. Foi muito significativo ocupar um espaço na 34ª edição do Festuris/Festival de Turismo de Gramado, no dia 5 de novembro, para falar sobre “Acessibilidade, Inclusão e os Desafios do Turismo no Sentido de Acolher a Diversidade Humana”. Nervosa e emocionada, subi no palco, olhei para o público, me senti acolhida e falei.
Se olharmos para todos os lados, vamos perceber que ninguém é igual a ninguém, que cada um de nós tem suas peculiaridades, que somos diversos. Meu foco aqui é a acessibilidade física em especial, sem ignorar que são muitas as barreiras que impedem a inclusão ativa e independente de todos os indivíduos na sociedade – econômicas, educacionais, comportamentais, de saúde, classe social, reconhecimento do outro. Mas o ambiente físico edificado, construído pelo homem para o próprio homem, torna ainda mais evidentes as distintas formas que aprofundam a exclusão de certos grupos. E as pessoas com deficiência estão entre os grupos excluídos.
Já viajei muito e afirmo com convicção: O turismo acessível ainda é um sonho
Para chegarmos à evolução necessária, que olhe as pessoas sem julgamento, independente de raça, cor, tamanho, peso, opção sexual, deficiência, idade, posição social, ainda temos um longo caminho a percorrer. Caminho que passa inevitavelmente pela descontaminação de olhares e atitudes. O ponto chave é combater o preconceito que trazemos enraizado desde a colonização do país pelos portugueses. Aqui chegaram brancos cheios de poder para tomar conta das terras e dividir a riqueza encontrada – os humanos considerados padrão: brancos europeus que comungavam da mesma ambição. Aqui chegaram e desconsideraram os habitantes originários da terra, os povos indígenas. Não contentes, buscaram negros na África para escravizar.
Assim a exclusão avançou e os indivíduos que não correspondiam às características já assimiladas foram sendo jogados para as margens. Construiu-se uma teoria da normalidade que ignorou e afastou os “diferentes” – pessoas com deficiência intelectual, mental, visual, auditiva, física, autismo, síndrome de Down; as chamadas “culpas de caráter individual” relacionadas ao alcoolismo, à opção sexual, até os estigmas tribais de raça, nação, religião e classe social.
Quase ninguém vê a singularidade destas pessoas, que transpõem infinitas barreiras físicas e sociais diariamente. De um modo geral, são vistas como inferiores por uma sociedade despreparada, que ergue barreiras quando deveria derrubá-las. Uma sociedade capacitista que não vê talento em uma pessoa diferente. O que fazem esses olhares, a não ser nos depreciar? O que entendem por inclusão e acessibilidade? Quem está preocupado com estas questões?
Derrubar barreiras é um dos grandes desafios da sociedade, de cada um de nós e, consequentemente, do setor turístico
Criar uma nova consciência, que valorize e inclua o ser humano na sua diversidade, certamente será transformador. É fundamental sensibilizar os diversos segmentos sociais no sentido de mostrar que a população é composta por minorias com distintas características e que essas minorias têm direito ao trabalho, ao lazer, a ir e vir com liberdade e acolhimento. Há leis que garantem esses direitos, mas poucos conhecem.
Ao longo dos séculos, o tipo humano padrão foi usado como referência para a construção dos espaços e para a oferta de oportunidades, o que acontece ainda hoje. Profissionais da Engenharia e da Arquitetura que fazem um prédio, uma casa, um centro de eventos, partem desta padronização que repercute em outras atividades. Quem não corresponde, não é lembrado e torna-se invisível. Como não somos ilhas, mas parte de um todo, quero provocar uma reflexão sobre Acessibilidade, Inclusão e Turismo.
Para quem estamos oferecendo opções turísticas e em que condições? Quem está olhando para a diversidade humana? Quem são os acolhidos? E quem são os excluídos?
Conscientizar e capacitar os profissionais que trabalham em empresas de turismo, em hotéis, bares, restaurantes, serviços públicos em geral, é um primeiro passo. Atender a diversidade das pessoas com alguma deficiência é dever, não é favor. O acolhimento facilita a socialização, a solidariedade, a expansão e o desenvolvimento. Tanto os setores públicos como os privados devem ter este olhar aglutinador.
Vou colocar no centro da cena o universo das pessoas com nanismo, que é a minha condição. Condição absurdamente marginalizada, alvo de atitudes desumanas, piadas grotescas, risos, deboche, imitações vulgares, enfim. As dificuldades que enfrentamos no dia a dia são inúmeras e, em determinadas situações, quase incontornáveis porque, repito, somos invisíveis para uma boa camada da população.
Por que o balcão da recepção de um hotel precisa ser alto? Acontece muito comigo quando chego em um hotel ou restaurante acompanhada por amigos – Os funcionários não se dirigem a mim, o que evidencia a dificuldade de lidar com alguém diferente da média. Falam com a pessoa que me acompanha e muitas vezes nem me olham ou fazem perguntas acolhedoras como “Precisas de uma ajuda?” / “Vais ficar bem acomodada?” / “Tu alcanças em tudo?”. Em ambientes públicos, a pergunta comum é “De que circo tu és?”. E tem aquelas pessoas que me atropelam, quase passam por cima, e quando se dão conta dizem: “Desculpa, pensei que fosse uma criança”. Quer dizer que dá para atropelar uma criança? Sem falar de profissionais, jornalistas como eu, que me pegam no colo em eventos, como se eu fosse um bebê, o que é constrangedor.
É necessário estimular a conscientização sobre as barreiras que efetivamente existem em todos os espaços. E trabalhar no sentido de eliminar ou suavizar essas barreiras para proporcionar o máximo de segurança e autonomia ao turista
Como ficam as pessoas que andam de cadeira de rodas? Como são recebidas em um hotel? A hotelaria está preparada? E pessoas cegas ou com baixa visão? E pessoas mais velhas, já com algum problema de locomoção? Ampliar o universo de pessoas a serem recebidas com dignidade deve ser uma das metas do setor turístico. Mas para isso é preciso sair do senso comum, desacomodar conceitos e mostrar que a sociedade é o resultado da soma de diferenças e não de indivíduos hipoteticamente iguais.
Acessibilidade é cidadania, direito social, independência. É acolher sem julgamentos
Quero ainda lembrar que temos a Lei Brasileira de Inclusão (Estatuto da Pessoa com Deficiência), sancionada em 2015, com base na Convenção da ONU. Foi criada para assegurar o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais, visando inclusão social e cidadania. Significou um grande avanço em muitos aspectos, mas não foi levada a sério como deveria e poucos conhecem. Regredimos porque a política praticada no país hoje não vê a diversidade, não vê a acessibilidade, não olha para a cultura, não é inclusiva, não respeita direitos.
A Lei nº 13.146 é muito clara nos seus princípios e define como pessoa com deficiência “Aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, e que, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. Mas quem efetivamente conhece os princípios desta lei que garante direitos para mais de 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, segundo dados levantados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2019?
Quase 25% da população do país tem alguma deficiência. É praticamente a população da Argentina. Não é pouco!
Estamos falando de pessoas que buscam qualidade de vida como qualquer outra. As cidades são acessíveis? Suas avenidas, ruas, sinaleiras, lojas, restaurantes, banheiros públicos? Que espaços turísticos e culturais estão efetivamente preocupados em fazer adaptações viáveis para que pessoas em cadeira de rodas ou cegas possam usufruir de uma viagem com tranquilidade, sem serem constrangidas de alguma maneira? Meu desejo é ainda viver em uma sociedade que olhe e respeite as diferenças porque somos diversos e queremos fazer turismo com dignidade. O caminho é longo, mas estou na estrada. Sempre estive. Esta é uma das lutas da minha vida!
Minha fala no Festuris/Gramado em 05 de novembro de 202