É comum escutarmos essa expressão em tom exclamativo, num convite para que o outro não se apegue demais ou consiga se desvencilhar de um objeto ou então – bem mais complexo – um vínculo que já não mais satisfaça ou seja benéfico. Apego é um termo complexo, que na Psicologia tem até uma teoria que envolve a forma como cada sujeito se constituiu e como as formas de relacionamento deste se desenvolvem ao longo da vida dependendo das primeiras experiências afetivas.
Eu preciso me desapegar de uma casa que significou muito na minha vida. Uma casa que carrega infinitas memórias, boas, bonitas, mas também tristes e estranhas. Uma casa onde minha mãe foi muito feliz, uma casa que me nutriu por muitos anos com uma felicidade quase garantida de perenidade. Cada pedacinho daquele lugar tem alguma memória grudada como tinta descascada. Há lembranças do que antes era liso e limpo. Com os anos, as memórias vão descascando e perdendo a cor. A sensação, com sorte, permanece, mas a imagem que a sustenta vai enfraquecendo, sofrendo edições e releituras que podem ressignificar tudo. E a vida adulta chega implacável e com ela as desilusões e afastamentos. Não precisava ser assim, mas às vezes uma casa volta a ser nada mais que uma casa. E uma casa, como todo tipo de amor, quando não é vista e cuidada, vai se abandonando, pequenos estragos vão se tornando grandes transtornos, aquela janela emperrada vai ficando cada vez pior até que ninguém mais consegue lembrar como foi que a deterioração começou. Chega a hora de abrir mão, de passar adiante, a hora em que o sentido das paredes passa a habitar só dentro de quem consegue não abandonar dentro de si todo um passado de vínculos e histórias que não deveriam ser possíveis que se apagassem como fotografias e quadros largados num hall de entrada porque os cupins já os devoraram. Desapegar não deveria ser abandonar, mas sim despedir-se. Despedir-se honrando aquilo que um dia teve a responsabilidade de ser recipiente da capacidade de apego de uma pessoa. Nunca gostei daquela máxima Exuperyana de que um torna-se eternamente responsável por aquele que cativa. Considero um luxo e um privilégio a capacidade de se apegar às coisas que se apresentam dispostas e merecedoras de tal investimento. Mas não é possível saber antecipadamente o que pode cativar ou descativar alguém. Cada um (tratando-se de adultos, principalmente) deveria responsabilizar-se por sua capacidade ou incapacidade de apegar-se a figuras que não tragam somente frustração ou violência. A responsabilidade é de ser sempre verdadeiro e honesto consigo e com os outros em todas as formas de relação. Ninguém sabe o que o apego poderá trazer. Por vezes, é alegria e reciprocidade. Outras, frustração e mágoa. Nenhum apego é garantido. Mas certamente a incapacidade de se apegar com a entrega e a confiança mínimas, assim como a incapacidade de ser ninho para o apego do outro, não faz uma vida ser totalmente rica em termos de afeto e experiências profundas e transformadoras.
Até aqui, falei de apego como uma capacidade saudável e desejada, o que de fato é. Também existe a saúde de conseguir abrir mão de laços, pessoas ou objetos que até então poderiam ser foco do apego, mas que, por motivos diversos e pela própria saúde mental e física, precisam ser deixados para trás. Como quase tudo no universo emocional e psicológico, apego e desapego são conceitos relativos e não há um certo ou errado.
Para desapegar, é preciso antes aprender a apegar. E apegar é se envolver, se misturar até um certo nível, se comprometer e ter partes de si no outro e carregar algo de precioso do outro em si. Isso envolve responsabilidade e risco porque, como já foi dito, um outro pode frustrar, partir, abandonar, ferir. Quando isso acontece, a tal parte nesse outro depositada também vai embora e, quando ou se for devolvida, será por vezes aos pedaços. Isso vale para todos os tipos de relações e dependendo da forma como as primeiras marcas dos primeiros vínculos foram se constituindo poderá ocorrer de forma saudável ou traumática.
Eu me apego com facilidade. Às vezes, demasiada. Gosto de tudo que o apego me traz, mesmo que por vezes eu tenha me enganado com uma falsa sensação de segurança que pude sentir e que na verdade não se confirmou. Ninguém TEM uma casa, ou um carro, ou uma outra pessoa. O que temos, com sorte, é o desejo de partilhar, de que aquilo ou aquela pessoa me carregue em si, que usufrua o que entendo ter de bonito ou de feio que possa lhe agregar algo. Apegar também é pegar algo do outro, saber carregar aquilo que o outro nos confia de si com sabedoria e cuidado.
Apego é pegar ou largar, amar é pegar ou largar. As relações nunca foram fáceis. Se nem cuidar de uma casa é fácil – porque a maresia está sempre no ar com a implacável tendência de tudo corroer – e abrir mão dela traz sentimentos ambivalentes, de pessoas e vínculos, mais ainda. Mas, com todo medo, com toda incerteza e dor que um apego desfeito pode trazer, viver sem apego não é viver por inteiro. A essa altura da vida, desapego-me da ilusão que um dia tive de que poderia viver desapegada. Desapego nunca foi sinônimo de liberdade.
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