A Enciclopédia Barsa foi o Google da minha infância e de boa parte da adolescência. Ainda lembro a sensação de trabalhar citações à mão para entregar em trabalhos de pesquisa escolar em folhas pautadas, cujas capas, com sorte, seriam de folha A4 ou ofício. Lembro-me, ademais, da necessidade imperiosa de retirar as marcas laterais do arrancado das folhas de caderno. O capricho estava no tracejado à régua e no corte preciso da tesoura, pois não havia grana para sempre comprar folhas pautadas avulsas. E o estilo se marcava – sim ou sim – na manutenção da letra emendada, bonita e legível.
A forma nunca foi meu problema, mas sim, nos inícios, a impotência intelectual momentânea diante do pedido de elaboração e síntese, além de uma enorme vergonha da possibilidade de ser desarticulada, de não dizer nada com nada. Contudo, a passagem de consultora para autora foi se dando nesse sempre tão importante “Escreve com as tuas palavras”. Minhas palavras? Por quê? Se as da Barsa parecem tão melhores, tão mais eloquentes. No rascunho, eu sempre copiava ipsis litteris em longos itens. Somente no trabalho final – na folha derradeira – é que me vinham as desenvolturas, por certo, nem sempre certas. De copiadora a articuladora de ideias, o caderno pautado foi fundamental. Depois, com o computador, outros baratos foram ganhando contorno: gastar menos árvores, escrever a duas mãos e não só com a direita, ensinar o corpo que a força do teclado não é a mesma da máquina de escrever, apagar sem errorex e, se tudo desse certo, imprimir.
O Google chegou a mim junto com milhares de textos da faculdade. A caligrafia foi só piorando, porque não dava tempo para muito rococó. Nada de queixas, afinal, aqui estamos. Recordo uma antiga paciente cuja expressão era excelente e que sempre dizia o quanto queria ser considerada uma mulher articulada. Nós mulheres, muitas vezes – até para sobreviver no campo afetivo –, nos passamos por burrinhas, desarticuladas. Para nós, bonita e divertida parecia ser mais do que suficiente. Inteligente já dá muito trabalho, é claro, para os machos do entorno. Intimamente, penso que a superação disso reside em que já não nos importa tanto o que os homens pensam de nós. Assumimos com mais facilidade que, sim, estamos pensando e, em grande parte, procurando entender como estará pensando outra de nós.
E agora temos a IA. Realmente tenho minhas resistências, não vou negar, apesar de detestar posturas saudosistas. Parece um caminho sem volta, assim como foi a própria internet. Algum uso, em alguma medida, acredito que faremos de suas benesses. Enquanto eu puder resistir, o farei. Em todo o caso, há uma coisa que me irrita profundamente e que me fará lembrar das árvores de novo, ou seja, lembrar de todos nós: essa IA é muito beberrona. Não necessitamos de tanta água em nossos processamentos; já a IA consome água em um ritmo assustador. Estima-se que o ChatGPT consuma um litro de água a cada 100 perguntas. Então, eu, que guardo a água de enxágue da minha roupa para outros fins, não posso me dar a esse luxo. Enquanto eu faço isso – algo é alguma coisa –, a Microsoft teve seu consumo de água aumentado em 34% com o ChatGPT. Quer dizer, que, por enquanto, declaro-me absolutamente desarticulada dessa inteligência. É um passo mínimo, meu pequeno banco de água, pensando em alguns futuros copos para quando estiverem por aqui aqueles que questionarão nossas inteligências.
Foto da Capa: Gerada por IA / Freepik
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