Executamos várias tarefas diárias no piloto automático, é um princípio biológico de economia, pois seria desgastante mesmo se precisássemos empreender toda uma nova gama de cognições a cada vez que fossemos escovar os dentes ou lavar a louça. Mas nessas de não desperdiçar cognições – em que até os ratos de laboratório se tornam especialistas – vamos alargando a economia e nos acomodando a um padrão de percepções que moldam nossas expectativas. Acabamos vendo as coisas como nos ensinaram a esperar que elas sejam vistas, negligenciamos a capacidade da mente. Por isso é tão difícil Ver e Ouvir com os próprios olhos e ouvidos.
Em um Satsang de quase três horas com Satyaprem (Retiro de Primavera 2022, no Sítio Leela, RS), lá pelas tantas o mestre zen lança a pergunta: “Você já viu os seus olhos?” A resposta pipoca automática de vários no salão: “Sim, no espelho”. Ora, que outra resposta poderia haver, certo? Errado. Começa a investigação e Satya vai levando os participantes a esgaçarem cognições na tentativa de explicar como veem os seus olhos. Sendo um mestre muito bem-humorado, ele conta uma piada para nos ajudar:
“Estava um homem meio embriagado num bar e, depois de três cervejas, acabou o seu dinheiro. Como ele queria continuar bebendo, sugeriu ao barmen uma aposta. ‘Se eu conseguir lamber o meu olho direito, você me serve um chopp grátis. Se eu não conseguir, vou embora’. O barman avaliou a situação e pensou: ‘Tá fácil, ninguém consegue lamber o olho. Esse bebum já perdeu’. E topou a aposta. O homem levou a mão ao olho, tirou-o da órbita e o encostou na boca, lambendo-o. O barmen, atônito, serviu-lhe o chopp. O homem ficou ali saboreando, despacito, o líquido dourado. Terminado o caneco e ainda com sede, ele falou para o barmen: ‘Vamos fazer outra aposta? Se eu conseguir morder o meu olho esquerdo, você me serve mais um chopp grátis. Se eu não conseguir, vou embora’. O barman, já muito desconfiado e incomodado, ficou olhando bem fixo para o homem e pensando: ‘Bom, esse sujeito está me vendo e vendo o copo, tá fazendo tudo direitinho, não é cego, não pode ter, portanto, dois olhos de vidro. Então, como levaria o outro olho até a boca? Impossível. Dessa vez, ele vai se dar mal’. E topou a aposta. O homem levou a mão a boca, tirou a dentadura e, com ela, mordeu o olho esquerdo.”
Todos nós, no salão, rolamos de rir. Essa é uma das delícias dos Satsangs com Satya, dar risadas, muitas risadas. Porque o assunto é sério, seríssimo, aliás, mas leveza é fundamental. Há décadas Satyaprem realiza esse trabalho, que é meditação, espiritualidade, o despertar de uma alegria cool, mas sobretudo é um ato político, um ato de descondicionar a mente, de escancarar a mentira coletiva de um mundo criado nos códigos, nas máscaras. (1)
Estamos preguiçosos, acomodados nas imagens preconcebidas que nos moldam o mundo, apreendendo atualizações parcas e torpes com nossos sentidos viciados. Nem mesmo a pandemia da Covid-19, que confrontou nossos limites e colocou o planeta em xeque, foi capaz de descondicionar a mente e a “revolução” do nosso tempo agora está sendo criar um “novo normal”. Mas o normal já era uma saia justa há muito tempo, não há a menor chance de que venha a servir mesmo com nova modelagem, não há remendo ou a mais luxuosa customização que vá funcionar. Então?
Talvez estejamos chegando ao limiar do Despertar, que nem é por opção, mas por falta de opção, caso contrário o movimento será vertiginoso ladeira abaixo. O caminho pode começar pela meditação – ou o simples relaxamento da mente através da respiração longa e pausada – para depois deixar que as cognições fluam mais vibrantes e soltas para formarmos novas percepções, a partir do zero. A mente calcula a extensão da barbárie de 3.000 anos e vai se livrando das amarras que nos condicionam a esse mundo violento, que cultua o individualismo – hoje turbinado pelo narcisismo, que se alça sobre o corpo como se a matéria orgânica fosse uma argila dócil aos desejos – e desacredita o amor. Não é possível ver os nossos olhos, a não ser que pudéssemos arrancá-los das órbitas e dispormos de um sentido extra de visão. Mas é possível Ver COM os próprios olhos.
Satyaprem conta que, quando era criança, suas festas de aniversário tinham sempre um mágico. Lembrei do filósofo e ilusionista David Abram, que, em shows no restaurante Alice’s, Massachusetts (EUA), fazia moedas rolarem por seus dedos e reaparecerem em outro lugar, então, desapareciam de novo, dividiam-se em duas e sumiam de vista. Uma noite, dois clientes voltaram ao restaurante logo depois de saírem e puxaram David de lado, aparentando preocupação. Quando saíram, disseram, o céu estava incrivelmente azul e as nuvens pareciam grandes e vívidas. Ele havia colocado algo na bebida deles? Ao longo das semanas, isso aconteceu outras vezes – os clientes voltavam para dizer que o tráfego parecia mais barulhento que antes; a luz da rua, mais forte; os padrões da calçada, mais fascinantes; a chuva, mais refrescante.
Os truques de mágica estavam mudando a forma como as pessoas percebiam o mundo. David explicou para Merlin Sheldrake, seu amigo biólogo, que atribuía isso às percepções baseadas nas expectativas criadas: “São nossas preconcepções que criam os pontos cegos que os mágicos aproveitam. Por atrito, os truques com moedas diminuem a solidez de nossas expectativas sobre a forma como as mãos e moedas funcionam. Eventualmente, isso se estende a nossas expetativas sobre percepções mais gerais. Ao sair do restaurante, o céu parecia diferente porque os clientes o viam como ele estava naquele lugar e momento, em vez de como esperavam que estivesse. Trapaceando nossas expectativas, retomamos os sentidos. O que espanta é o abismo entre o que esperamos encontrar e o que encontramos ao olharmos de fato.” (2)
No início do século XX, várias pesquisas acadêmicas na esteira das descobertas de um neurologista austríaco, dr. Poetzl, com o taquistoscópio, já comprovavam que as pessoas veem e ouvem de fato muito mais do que sabem que veem e ouvem. E aquilo que veem e ouvem sem saber fica registrado nas suas mentes subconscientes, podendo afetar seus pensamentos, sentimentos e comportamentos, e também servir de material na construção dos sonhos. (3) Esse confronto entre o que vemos e ouvimos e o que nos foi ensinado a ver e a ouvir pode estar na raiz da angústia que tortura o ser humano, pois se seguir um padrão nos exige menos esforço cognitivo, ao mesmo tempo agride brutalmente a nossa natureza. Tanto que ao Despertar, passado o “susto”, podemos dizer assim, a sensação é a de um relaxamento sem par, mas sobretudo é liberdade. Uma mansidão nos envolve ao percebermos que nada pode nos prender. Tomamos consciência de quem somos e não precisamos nem de velho e nem de novo normal. A gota d’água contém o oceano, estamos prontos para navegar.
(1) Satyaprem realiza retiros no Sítio Leela, Morro da Borússia (RS) e diversas cidades brasileiras e do exterior. De 11 a 15 de outubro próximos acontece o Retiro da Primavera 2023. Mais informações: www.satyaprem.online/primavera
(2) Merlin Sheldrake descreve a apresentação de mágica do seu amigo David Abram no livro A trama da vida, como os fungos constroem o mundo, para ilustrar a mudança na sua forma de compreender o mundo a partir dos seus profundos e intensos estudos como micologista, no laboratório, na floresta e na cozinha. “Esses organismos põem em xeque nossas categorias, e pensar sobre eles faz o mundo parecer diferente. Tentei encontrar maneiras de aproveitar as ambiguidades que os fungos manifestam, mas nem sempre é fácil manter-se sereno no espaço criado por questões abertas. Pode dar agorafobia. É tentador se esconder em salas pequenas construídas com respostas rápidas. Fiz o melhor que pude para me conter.”
(3) A experiência do dr. Poetzl com o taquistoscópio é descrita por Aldous Huxley no livro Retorno ao admirável mundo novo, de 1958. A Biblioteca Azul, Rio de Janeiro, lançou uma nova edição em 2021 e você pode ler no capítulo IX, Persuasão subconsciente.