Com frequência ouvimos relatos de alguém que teve seus bens pessoais penhorados para garantir o pagamento dos débitos de uma empresa da qual foi sócio ou administrador, o que para muitos parece ser muito estranho, uma vez que essa atitude a princípio violaria a personalidade jurídica autônoma da pessoa jurídica. Todavia, como se demonstrará isso só ocorre em casos muito específicos.
Vale esclarecer que o instituto jurídico foi incorporado no ordenamento jurídico brasileiro, com o advento do Código do Consumidor, em 1990, que determinou expressamente que o “juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.
Essa mesma legislação também determinou que as sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. Uma responsabilidade solidária é acessória. Isso significa que é preciso observar uma ordem para a cobrança da dívida. Primeiro busca-se o cumprimento da obrigação pelo devedor principal, e somente se a dívida não for integralmente paga pelo devedor principal, se buscam os bens do devedor subsidiário para o pagamento da dívida.
Se, todavia, houver uma sociedade coligada, ou seja, uma sociedade de cujo capital outra sociedade participa com dez por cento ou mais, do capital da outra, sem controla-la, ela só responderá se houver agido com culpa.
Uma outra hipótese que enseja a desconsideração da personalidade jurídica, de acordo com o previsto pelo Código do Consumidor, é quando a personalidade da pessoa jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Essa hipótese consubstancia a chamada “Teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica”.
Importante salientar o entendimento fixado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), de que a desconsideração da personalidade jurídica, quando ela for obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados ao consumidor, não é aplicável ao gestar que não integra o quadro societário da empresa. Todavia, como se demonstrará a seguir, esses gestores poderão vir a ser responsabilizados, em outras hipóteses, aplicando-se a “Teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, de acordo com o previsto no artigo 50 do código Civil.
Veja-se a ementa do Recurso Especial nº 1.862.557 – DF (2020/0040079-6)
“RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. PERSONALIDADE JURÍDICA. DESCONSIDERAÇÃO. INCIDENTE. RELAÇÃO DE CONSUMO. ART. 28, § 5o, DO CDC. TEORIA MENOR. ADMINISTRADOR NÃO SÓCIO. INAPLICABILIDADE. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. POLO PASSIVO. EXCLUSÃO.
- Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nos 2 e 3/STJ).
- Para fins de aplicação da Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica (art. 28, § 5o, do CDC), basta que o consumidor demonstre o estado de insolvência do fornecedor ou o fato de a personalidade jurídica representar um obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados.
- A despeito de não exigir prova de abuso ou fraude para fins de aplicação da Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica, tampouco de confusão patrimonial, o § 5o do art. 28 do CDC não dá margem para admitir a responsabilização pessoal de quem não integra o quadro societário da empresa, ainda que nela atue como gestor. Precedente.”
Como se disse acima, existe também a “Teoria maior desconsideração da personalidade jurídica”, adotada pelo Código Civil, que dispõe que “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”.
O desvio de finalidade ocorre quando se utiliza da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. A confusão patrimonial ocorre quando há a ausência de separação de fato entre patrimônios, caracterizada por
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante;
III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
Isso também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
Uma causa muito comum de desconsideração da personalidade jurídica é a dissolução irregular da sociedade, pois a inexistência de bens e ativos financeiros cria um obstáculo ao ressarcimento do prejuízo causado ao credor.
Existe também “a desconsideração inversa ou invertida”, que visa responsabilizar a empresa pelas dívidas dos seus sócios. Ela ocorre quando houver o abuso da personalidade jurídica. Por exemplo, o sócio transfere seu patrimônio para a empresa, com o objetivo de não pagar suas dívidas particulares.
Mesmo com todos os percalços jurídicos necessários para que uma “desconsideração da personalidade jurídica” efetivamente ocorra, elas representaram um grande avanço na correção de abusos cometidos por maus pagadores, e às vezes requerer a desconsideração da personalidade jurídica de uma empresa é a única forma de se obter o pagamento devido.