Diante de batalhas difíceis, para as quais nos sentimos frágeis, muitas vezes é necessário recuar e avaliar o momento. O recuo consciente possibilita um olhar pelo avesso, que pode mostrar que nada foi em vão. Tentativas sempre são bem-vindas. Pelos valores que cultivo, descortinar o avesso pode abrir novos caminhos. Foi o que aprendi vida afora de um jeito muito natural com meus pais, avós, tios, amigos e com a minha diferença.
Não me encolhi diante da discriminação. Em determinadas situações, depois de me dar conta do nanismo e da agressividade externa que esta condição provoca, entendi o momento de me retirar para evitar a exposição, às vezes muito cruel, e me fortalecer para voltar. O olhar pelo avesso me possibilitou encarar o preconceito e falar com naturalidade sobre invisibilidade social, inclusão e diversidade no sentido de contribuir de forma efetiva para uma sociedade múltipla e libertária, livre de olhares capacitistas.
O aprendizado primeiro veio do ninho familiar, que me deu forças para abrir as asas e encarar a vida lá fora, os estudos, o mundo do trabalho, a responsabilidade sempre aguda e os tantos enfrentamentos, sempre atenta ao cuidado com o outro. Nunca dei ousadia ao ter, mas ao ser. Desde sempre. E com a maturidade, mais ainda. Encarei os fantasmas que me atordoavam. Voltei alguns passos para recuperar o fôlego e segui acreditando que, sim, é possível mudar alguma coisa.
“Ande e olhe / Vire e mexa / Não se incomode / Com essa falta de assunto / Ande muito / Veja tudo / Não diga nada além / De dois minutos”, canta Gal Costa.
Andei, olhei, virei e mexi nas linhas da vida, retas e curvas. Há tantos atalhos que podem nos levar por outros caminhos, formulando novas questões para não enferrujar, não acumular mágoas inúteis e não estagnar burramente. É interessante olhar pelo avesso, considerar o contrário, o inusitado, para não cair no perigoso jogo da história única.
Ler o avesso do avesso do avesso do avesso
Como a música sempre me acompanhou, lembro agora de “Sampa” que Caetano Veloso fez para São Paulo, cidade onde chegou muito jovem para impulsionar sua carreira. É uma canção que diz muito do que fui descobrindo. Diz do que senti ao chegar na cidade grande, encarando a estranheza que provocava ao andar pelas ruas.
“E quem vem de outro sonho feliz de cidade / Aprende depressa a chamar-te de realidade / Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso / Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas / Da força da grana que ergue e destrói coisas belas / Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas / Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços / Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva / Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba / Mais possível novo quilombo de Zumbi / E os Novos Baianos passeiam na tua garoa / E novos baianos te podem curtir numa boa.”
Viver é reinventar-se sempre que possível. É considerar os avessos internos e externos, os conflitos e a busca pela harmonia necessária porque não nascemos prontos.
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Foto da Capa: Gaspar Zaldo / Pexels