Imaginemos que a Constituição Federal seja uma larga e extensa avenida onde qualquer um poderia morar e todos viveriam em harmonia, cada um cumprindo suas obrigações e fazendo valer todos os seus direitos.
No número 227 da Constituição, existe um grande parque com uma placa informando que crianças e adolescentes têm absoluta prioridade. Para onde quer que se olhe, no número 227 da Constituição, há uma promessa de presentes para crianças e adolescentes, garantidos pela família, pela sociedade e pelo Estado.
No dois, dois, sete da Constituição, crianças e adolescentes vivem com saúde, bem alimentados, cultos, prontos para se profissionalizar com dignidade e liberdade e aptos a conviver em família e na comunidade. Lá, crianças e adolescentes estão a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Pena que milhares de crianças e adolescentes não consigam alcançar o 227 da Constituição Federal. A Kerollyn é uma delas. Aos 9 anos, não conseguiu chegar lá. Perambulava, numa velha bicicleta, sempre à margem da Constituição.
Ficou travada e deixou pelo caminho dois irmãos menores no número 205, onde deveria ter recebido do Estado, com a ajuda da família e da vizinhança, incentivo para se educar, se desenvolver e se qualificar para o trabalho.
Kerollyn Souza Ferreira, cidadãzinha brasileira de 9 anos, tinha dois irmãos menores. Um deles, ela levava todos os dias à escola. Deixava lá, ia para a escola dela e voltava na hora da saída. Era tão boazinha a Kerollyn, que até ganhou um par de brincos de uma professora.
Tudo certo, não? É isso o que se quer para a vida das crianças.
Todo mundo conhecia Kerollyn na Cohab Santa Rita, em Guaíba. Todo mundo sabia, também, que ela pedia roupa e comida na vizinhança… O pessoal até sabia que Kerollyn tinha um automóvel só pra ela. E todos sabiam que era um carro abandonado, onde a guriazinha passava noites abrigada do frio e das surras que levava da mãe quando ia para casa…
A Kerollyn morreu. Agora, é só lembrança.
A vizinha lembra dela brincando com a filha e das marcas deixadas pela mãe no corpo e na alma da menina.
A vizinha lembra, também, das inúmeras vezes que procurou o Conselho Tutelar – abrigado no número 227 da Constituição para garantir prioridade absoluta a crianças e adolescentes – e denunciou as condições de vida da Kerollyn.
O pessoal do Conselho também lembra da Kerollyn. Eles até estiveram na casa dela e concluíram que ela não corria nenhum risco, apesar das marcas da violência…
Todos lembram que a Kerollyn era bonitinha, carinhosa e gostava de abraçar e ser abraçada. A professora lembra que a guria era boa aluna, mas “parecia” ter algum atraso cognitivo. Claro, não? Se tivesse passado pelo 205 da Constituição, Kerollyn não teria esse atraso.
A Kerollyn morreu. Foi encontrada dentro de um contêiner de lixo. Longe, muito longe do 227… Ainda não sabem a causa da morte. A mãe da Kerollyn é suspeita de assassinato. Mas será que é só prender a mãe e pronto? Será que um exame de consciência coletivo não será mais efetivo para descobrir de que morreu aquela criança de 9 anos?
O desleixo, a negligência, a solidariedade tardia, a ignorância, a crença de que a simples distribuição das sobras dos mais abastados é suficiente… Não seriam sintomas do mal que mata milhares de Kerollyns nas margens da Constituição Federal?
Desculpa, Kerollyn, por não ter ajudado você a desfrutar do Artigo 227 da Constituição Federal.
Foto da Capa: Reprodução de Redes Sociais
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