Até o momento em que escrevo esse artigo, dia 08 de maio, segundo publicado no site do g1 RS, 9h33min, em razão da catástrofe que ainda está acontecendo no Rio Grande do Sul, já foi alcançado o número de mais de 100 mortos, 128 pessoas estão desaparecidas, e mais de 1.4 milhão de pessoas foram afetadas pelos temporais, sem falar que cidades foram em grande parte destruídas. Isso é sem dúvida uma das maiores tragédias, se não for a maior, que o Brasil já enfrentou. Impossível para qualquer pessoa, com um mínimo de empatia, não ficar sensibilizado. Se for gaúcho e estiver vendo in loco as pessoas que sofrem diretamente essa destruição, dói muito. Estou profundamente triste de ver que um número imenso de pessoas e animais morreram, sem mencionar as centenas de milhares que estão sofrendo e que perderam quase tudo o que tinham.
Muitos perderam seus pais, filhos, familiares, afetos, casas, escolas, trabalhos, hospitais, suas cidades, ou condições de virem a trabalhar e produzir, e até mesmo seus imóveis, casas, terrenos ou campos perderam muito do seu valor comercial. Quem quer comprar uma linda casa, apartamento, terreno ou fazenda que fica logo abaixo de barragens que, dependendo do desequilíbrio climático ou de uma manutenção inadequada, podem romper, matar quem estiver rio abaixo e destruir o que encontrar no caminho? Sobre isso, escreverei um artigo em específico. Imagino que o Ministério Público e a sociedade vão investigar a fundo por quais razões uma barragem rompeu, se nas cidades inundadas existiam equipamentos ou sistemas para combater ou mitigar essas inundações, se esses equipamentos funcionaram como esperado, se havia a correta manutenção, e se vidas poderiam ter sido poupadas se tudo estivesse bem cuidado e fiscalizado pelo poder público.
Mas hoje vou me dedicar a um assunto menos polêmico e possível de me gerar menos emoções negativas. Fiquei abalado emocionalmente com o que está acontecendo com as pessoas, com os animais, e com o destino das cidades que foram destruídas, inundadas pela enchente que acabou virando um tsunami.
Imagine, por exemplo, que você é um industrial, sua indústria produz determinado insumo que você vende para uma empresa distribuidora em São Paulo, que os utiliza para a produção de móveis, revestimentos de aviões etc. Você recebeu um adiantamento dela, aceitou pedidos, recebeu adiantamentos, e sua indústria foi literalmente “pro brejo”. E agora como produzir o que prometeu entregar? Ou então que você tem um contrato com um produtor de óleo de soja, pelo qual você é obrigado a entregar “x” toneladas, e sua lavoura foi destruída e você tem de pagar o financiamento do equipamento que comprou para fazer frente a obrigação. Alguns seguros até cobrem perdas e danos e lucros cessantes causados por desastres naturais, mas a cobertura muitas vezes é limitada e o custo para algumas pessoas físicas ou jurídicas pode ser complicado. Suponha, ainda, que você está construindo um prédio, deu um adiantamento para a construtora e já revendeu algumas unidades para pessoas que já lhe deram algum adiantamento e vem lhe pagando regularmente. E se você comprou o material para a construção parcelado, e um “tsunami” causado por uma enchente destruiu tudo, e lhe deixou sem condições de pagar seu fornecedor e construir a obra que lhe contrataram e adiantaram o dinheiro? O que fazer em uma hora dessas? O que fazer em uma situação em que acontece uma catástrofe, um imenso desastre natural? Esses contratos poderão ser executados ou terão de ser terminados?
A resposta é uma daquelas que irrita quem faz a pergunta: depende de cada caso, do que estiver disposto em cada contrato, se houve responsabilidade conjunta da parte nos danos, se ele poderia ter tomado medidas que mitigariam o risco e nada fez.
Quando existem estipulações contratuais detalhando como as partes devem proceder em caso de uma força maior, muitas vezes uma solução razoável para as duas partes pode ser alcançada. Com frequência encontram-se contratos que estipulam que se houver uma situação de força maior que impeça a execução do contrato, ele poderá ser suspenso por “x” meses. Também é comum existirem cláusulas em que as partes, na ocorrência de uma força maior se comprometem a discutir as adequações necessárias, revisarem custos, prazos, preços e pagamentos. Geralmente essas cláusulas estão presentes em contratos de exportação, contratos a longo prazo, em construções de plantas industriais, ferrovias, hidrelétricas, em compras de sistemas constituídos em equipamentos de grande porte em que obras de engenharia são necessárias, construções de navios, em compras de grandes equipamentos.
Outrossim, é muito bom quando acontece de haver uma cláusula estipulando que se as partes não chegarem a um acordo pode haver uma mediação, que as partes devem tentar ao máximo restabelecer a equação econômico-financeira do contrato, fazerem tudo o que for razoável para a preservação da relação contratual. Além disso, ajuda muito quando nesses contratos constam que a declaração da força maior a outra parte deve ser dada com a maior brevidade possível, o que evita uma melhor verificação se houve ou não a força maior, e se a parte que declarou a força maior fez o que era possível para mitigar os danos. Isso será fundamental quando se discutir se cabe ou não a indenização por perdas e danos e o seu valor, pois ainda que o Código Civil determine que não cabe o pagamento de perdas e danos nessas situações, se a outra parte demonstrar que o prejuízo ou danos poderiam ter sido bem menores, caso a parte que declarou a força maior tivesse agido com zelo e cuidado, tivesse mitigado os efeitos danosos da catástrofe, ela poderá, em algumas circunstâncias, vir a ganhar alguma indenização pelos danos que poderiam ter sido evitados.
Mas na maioria das vezes os contratos não são tão elaborados, tão complexos e, com frequência, sequer são revisados por advogados. Os problemas aparecem quando algo dá errado, pois se as partes cumprirem todas as suas obrigações e obrigações legais, o contrato não precisará ser discutido para resolver algum impasse. Como se não bastasse, há diversos contratos que são de boca, celebrados por mensagens de WhatsApp, e-mails etc., uma verdadeira desgraça em caso de desentendimento entre os contratantes. Nessas circunstâncias, resta pedir socorro a um advogado, que fará o que for possível, muitas vezes em um cenário contratual desfavorável. Para tanto, ele poderá recorrer-se do Código Civil e em alguns casos do Código Consumidor, e uma alegação de força maior poderá causar um grande impacto positivo para que seu cliente não seja responsabilizado pelas obrigações que não pôde cumprir.
De acordo com o previsto no Código Civil, “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”, e “o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. Infelizmente, o nosso Código Civil faz essa pequena confusão entre o caso fortuito e a força maior, e diversos autores discutem qual seria a correta definição de cada um deles, mas a tendência moderna na hora de aplicar o direito é considerar a força maior e o caso fortuito uma coisa só.
Vale destacar que embora a força maior seja mencionada no Código Civil, seu conceito encontra-se na doutrina e na jurisprudência. Gosto muito do conceito elaborado por Cunha Gonçalves “fato previsto ou previsível, mas igualmente superior às forças humanas”. Para Capitant, a força maior é um “acontecimento (força da natureza, fato de um terceiro) que não pode ser previsto nem evitado e que libera o devedor na impossibilidade de executar sua obrigação ou exonera o autor de um dano na impossibilidade de o evitar em proveito do credor ou do terceiro vítima do dano”.
Para Palbo Stolze, “a característica da força maior e a sua inevitabilidade, mesmo sendo a sua causa conhecia (um terremoto ou uma erupção vulcânica, por exemplo); ao passo que o caso fortuito, por sua vez, tem a sua nota distintiva na sua imprevisibilidade, segundo os parâmetros do homem médio.
Muitas vezes, no entanto, a impossibilidade causada pela catástrofe da continuidade da execução do contrato é parcial, basta renegociar um novo prazo ou até um ajuste financeiro para que a parte contratada possa vir a cumprir as suas obrigações contratuais. Nesse caso não faria o sentido o término do contrato, a resolução contratual. Nessa circunstância, o contrato pode ser revisado, podem ser estabelecidas novas condições que viabilizarão o prosseguimento do contrato. Claro que se isso não for possível, haverá a resolução contratual de pleno direito.
Em alguns casos ainda poderia ser invocada a teoria da imprevisão e o instituto da onerosidade excessiva previstos tanto no Código do Consumidor quanto no Código Civil. De acordo com o Código Civil, “nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.” Outrossim, “a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato”, e “se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva”.
Recomendo a todos que forem vítimas de uma força maior ou de uma onerosidade excessiva causada em razão de uma catástrofe que, assim que possível, façam fotografias, vídeos, uma ata notarial, coletem provas para fundamentar seus pedidos de rescisão contratual sem o pagamento de perdas e danos. Isso poderá ser muito útil se o outro contratante vier alegar que a sua instalação não foi realmente destruída ou abalada pela força maior em um processo judicial, e exigir o pagamento de perdas e danos pelo término do contrato.
Se um cliente seu precisar dos seus produtos ou serviços, e você já souber que em razão da força maior, você não poderá cumprir o objeto contratual nos prazos e quantidades ajustados, ou de que será realmente impossível atender o pedido contratual, por exemplo, notifique-o imediatamente, para que ele possa mitigar os prejuízos decorrentes. Isso pode ser vantajoso para você, pois além de agir com boa-fé contratual e transparência, poderá reduzir o valor da indenização que talvez você tenha de pagar, se a força maior não for reconhecida em uma ação judicial.
Para aqueles que desejam dispensar seus empregados, alegando força maior, nos moldes dos artigo 501 e 502, II da CLT, que daria o direito do empregador pagar ao empregado metade da que seria devido em caso de rescisão sem justa causa, saliento que para tanto é necessária a extinção da empresa ou de um dos estabelecimentos que o empregado trabalhe.
Nesse sentido, vale transcrever importante entendimento do Tribunal Superior do Trabalho, publicado no site do Jusbrasil, ao julgar uma reclamatória trabalhista fundada em dispensa causada por força maior.
“AGRAVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESCISÃO DO CONTRATO DE TRABALHO. DISPENSA SEM JUSTA CAUSA. MOTIVO DE FORÇA MAIOR NÃO CARACTERIZADO. PANDEMIA DA COVID-19. Hipótese em que o Tribunal Regional, instância soberana na apreciação do conjunto fático-probatório, consignou que a reclamada não se desincumbiu de comprovar que a alegada “força maior” afetou substancialmente sua situação financeira, comprometendo a continuidade da atividade econômica e a manutenção das relações de emprego. Salientou aquela Corte que não se constatou a extinção da empresa ou pelo menos do estabelecimento em que o autor trabalhou. Assim, diante das premissas fáticas constantes do acórdão, insuscetíveis de reexame (Súmula 126/TST), inaplicáveis as disposições do artigo 501 da CLT, a justificar a dispensa do autor por força maior em razão dos efeitos da pandemia da COVID-19. Agravo não provido.” 20205170013
Espero que esse artigo possa lhes ser útil de alguma maneira, mas como disse acima, a continuidade ou término dos contratos, ou até mesmo a obrigatoriedade do pagamento de alguma indenização depende de cada caso concreto, das circunstâncias, do impacto da catástrofe sobre cada relação jurídica e do relacionamento das partes depois do evento danoso. Nessa situação, se possível peça o auxílio de um advogado para construir bem seu caso, ajudar na obtenção das provas, na elaboração da troca de comunicações entre as partes, e na tratativa de eventual acordo.
Isso poderá lhe economizar ou trazer muito dinheiro.
Foto da Capa: Freepik IA-generated
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