A crônica das tragédias anunciadas. As cartas foram dadas. Estavam todas na mesa. Só não viu quem não quis. Quem ganha com a desgraça do outro. Quem acumula sem pensar que tamanha ambição aniquila os mais frágeis. Quem ainda acha que vive na casa grande e segue apoiando a escravizando sem escrúpulos. Difícil lidar com tanto descaso, irresponsabilidade e ganância quando, de uma hora para outra, milhares de pessoas perdem tudo por conta das chuvas torrenciais que destruíram o litoral norte de São Paulo. E quando trabalhadores vivem situações análogas à escravidão em regiões ricas da Serra gaúcha. Regiões que produzem o vinho que tanto gostamos.
O líquido precioso de brindes que animam nossas festas e encontros afetivos agora se tornou indigesto, arde na boca e na alma. Carece de dignidade!
A podridão do reino dos humanos afeta o nosso equilíbrio físico, mental, emocional e intelectual e o equilíbrio do meio ambiente, vital para a sobrevivência no Planeta Terra. De um lado, chuvas torrenciais, desabamentos, desabrigados, desaparecidos, mortes de famílias inteiras, desespero. De outro, a seca que devasta a produção de agricultores no interior do RS. Ninguém vê o desequilíbrio cruel provocado pela ganância do homem?
Ter, ter, ter! E não olhar com profundidade, não analisar, não sentir.
Empatia zero e ambição desmedida.
Mas o que mais me assusta neste momento específico é a “reinauguração contemporânea” do trabalho escravo que, depois dos navios que ancoravam nas águas do triste passado colonial brasileiro, chega agora pelas estradas. A ambição é a mesma: seguir escravizando a população vulnerável. Mais de 200 trabalhadores trazidos do Nordeste para a colheita da uva em vinícolas da Serra gaúcha foram submetidos a condições desumanas, tanto nos vinhedos onde trabalhavam, como nos alojamentos onde ficavam depois de árduas jornadas nos parreirais. Os contratos eram feitos por uma empresa que se responsabilizava pela mão de obra que fazia a colheita nas vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton. Diante da tragédia anunciada, e finalmente denunciada, as vinícolas enfatizaram o respeito às leis. Afirmaram que os contratos com os fornecedores já foram rompidos e que se solidarizam com os trabalhadores. Mas é difícil acreditar que não percebiam nada. Difícil não, é impossível acreditar!
Por isso, também me assustam as justificativas dos empresários do ramo na região, que declararam não saber de nada. Confiavam tanto assim na terceirização? Não visitavam seus parreirais lindos, carregados de uvas tão apreciadas pelos turistas? Não tinham curiosidade pelos trabalhadores que chegavam de tão longe? Quanta hipocrisia! Além das exaustivas jornadas diárias, comiam mal e nos alojamentos precários e sujos, teoricamente o lugar onde deveriam descansar os corpos cansados, eram humilhados, maltratados e sofriam constrangimentos de todo tipo.
Depois de um janeiro inusitado pelo desmando fascista de inconformados e ignorantes que invadiram Brasília, vivemos um fevereiro de eventos climáticos extremos e tragédias nunca vistas antes. As chuvas torrenciais no litoral norte de São Paulo, com desabamentos que levaram casas morro abaixo, um mar de lama, destruição e mortes. A seca no Rio Grande do Sul que acabou com as plantações desta época do ano e deixou muitos agricultores sem água para consumo próprio e para o consumo dos animais. O gado sem ter o que comer e beber. As plantações morrendo pela falta de chuva. As famílias apreensivas economizando o possível para manter o mínimo. E ainda a poluição do rio Gravataí, resultado da ação nefasta do homem e da falta de fiscalização, descaso total com a natureza. E por aí vai!
O que esta realidade diz de nós? Alguém consegue ouvir?
Mas o que presenciamos no Rio Grande do Sul no final de fevereiro/início de março de 2023 é de um retrocesso civilizatório lamentável. A vergonhosa fala do vereador de Caxias do Sul, racista, xenófoba, histérica e preconceituosa, é das mais hediondas que já ouvi. “Não contratem mais aquela gente lá de cima”. “Vamos contratar os argentinos”. “Agora com os baianos, que a única cultura que eles têm é viver na praia tocando tambor, deixem de lado aquele povo acostumado com carnaval e festa”. O poder nas mãos de gente que desdenha do povo, fala mal das festas populares e pede reverência ao patrão é destruidor. E depois de ofender a Bahia de forma grosseira, ignorante e prepotente, pediu desculpas descaradamente.
Antes de finalizar, mais um comentário. Agora sobre a fala do presidente da Câmara de Vereadores de Caxias do Sul, Zé Dambrós. Depois de Sandro Fantinel ser expulso do partido, virar alvo de ação judicial de duas ONGs paulistas, da Polícia Civil abrir inquérito para investigar o crime de racismo e do risco de sofrer impeachment, Dambrós disse achar que a medida da Câmara de Caxias desnecessária porque entende que é uma questão de opinião pessoal. Opinião pessoal? Não entendi. Todos sabem que Fantinel é “reincidente em falas criminosas”, como pontuou o jornalista Ciro Fabres no Matinal. Em que mundo mesmo a gente está vivendo?
Sinto vergonha desta volta a uma escuridão que remete ao nazismo e ao fascismo. Mas as cartas estão dadas e o meio ambiente que entrelaça natureza e humanidade está dando respostas. Vamos continuar de olhos fechados?