“Tudo o mais na existência da mulher é subordinado à sua função indispensável de dar continuidade e procriar a raça humana, isso durante os melhores anos de sua vida, tarefa que, uma vez exercida em toda a sua plenitude, deixa pouco lugar para outras atividades.”
Trecho extraído de um panfleto escrito pelo historiador FRANCIS PARKMAN, intitulado Some of the reasons against woman suffrage, para a Associação de Massachusetts Contra à Extensão do Voto às Mulheres (Boston, 1910).
Na mesma época da divulgação do panfleto, se passa a ação da peça teatral YERMA, de Federico Garcia Lorca, a qual retrata a dramática história de uma mulher estéril para gestar.
Yerma se lamentava com Maria, ambas camponesas espanholas, “de estar casada há dois anos e vinte e oito dias e de ainda não ter filhos”. Maria, casada há apenas seis meses, explicava extasiada como se sentia com sua gravidez de cinco meses.
– Nunca tiveste um pássaro vivo nas mãos? Pois é a mesma coisa, mas dentro das veias da gente. Yerma reconhecia que “ter um filho não é ter um ramo de rosas, é verdade. Teremos de sofrer para tê-los. Em cada filho, perdemos metade de nosso sangue, mas isto é bom, sadio e bonito. Cada mulher tem sangue para quatro a cinco filhos e, quando a gente não os tem, ficamos envenenadas, como certamente acontecerá comigo.”
Yetrma, angustiada por ainda não estar grávida e querendo saber o que poderia fazer, consultava frequentemente as camponesas mais velhas, mães de muitos filhos…
– Gostas do teu marido? – perguntava uma velha camponesa. Desejas intensamente estar com ele? Não tremes quando ele se aproxima de ti? Não sentes algo como um devaneio quando ele encosta seus lábios nos teus?
Yuma: “Talvez apenas uma vez com Vitor, meu primeiro namorado. Ele me pegou pela cintura e me agarrou em seus braços para saltarmos uma cerca e então deu-se em mim um tremor que me fez bater até os dentes.”
Camponesa intrigada: “E com teu marido?
“Com meu marido é outra coisa” – respondeu Yerma – “foi-me dado por meu pai e simplesmente o aceitei. Com alegria, é verdade, pois no mesmo dia em que fiquei com ele, já pensei nos filhos que teria”.
Aqui a camponesa responde com sabedoria:
“Comigo foi diferente e talvez seja por isso que ainda não tenhas parido. Eles têm de desmanchar as nossas tranças e dar-nos de beber o vinho em sua própria boca.
“Isto pode acontecer com teu homem”, disse Yerma. “Com o meu, não, me entreguei mais para satisfazê-lo e sigo me entregando para ver se ele me fecunda, mas nunca para divertir-me”.
“E disso resulta que estás vazia” – disse-lhe a camponesa.
Amarguradamente, Yerma responde: “Não, vazia não, porque estou me enchendo de ódio. Diga-me, tenho eu a culpa? É preciso buscar num homem, um homem e nada mais? Então, o que pensas quando o teu te deixa na cama com os olhos tristes, mirando o teto, se vira e dorme?
O panfleto de Francis Parkman e a peça de Garcia Lorca parecem hoje anacrônicos. Embora o panfleto tenha valor histórico e a peça um delicioso sabor poético, na verdade são situações impensáveis para a maioria das mulheres que vivem nos países ricos ou nas que vivem nas classes sociais ricas dos países pobres. Suas vidas não são mais comandadas por processos fisiológicos, nem por (pre)conceitos e opiniões ginecofóbicas. O direito de votar e de ser votada tornou-se uma realidade não só em Massachusetts, mas em (quase) todo o mundo e o drama de Yerma hoje é resolvido pelas tecnologias de fertilização.
Estas, junto com as práticas anticoncepcionais, ampliaram as possibilidades de ter ou não ter filhos. Há situações inimagináveis a partir da metade do século 20. Os progressos médicos e as conquistas sociais criaram uma realidade impensável para nossos avós, a de que o destino das mulheres não está mais circunscrito à função reprodutiva. Algumas agora optam por não ter filhos, quebrando assim a multimilenar associação entre a feminilidade e a maternidade.
Minha indagação, depois de ler e assistir à peça teatral de Garcia Lorca, é se o desejo de ter filhos se constitui um critério de equilíbrio psíquico? Na minha longa prática clínica, observava com certa frequência que o desenvolvimento da gestação desencadeava situações de desequilíbrio emocional que se passavam desde leves depressões emocionais até a psicoses (raras, é verdade) e até mesmo a estados de exageradas euforias maníacas. Em geral, creio não existir um sentimento generalizado de absoluta rejeição ou de uma total aceitação da maternidade e a ambiguidade está sempre presente na vida das mulheres modernas que não querem ser nem Joana d’Árc nem Madres Terezas de Calcutá. Isto não me parece uma atitude egoísta, mas equilibrada e natural, diante da complexidade do mundo moderno, das dificuldades de se criar filhos em tempos difíceis e diante dos intrincados entrelaçamentos das tranças culturais e míticas que têm que ser desmanchadas.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras
Todos os textos da Zona Livre estão AQUI.
Foto da Capa: Freepik.