Um grande ano para celebrar Caetano Veloso é este 2022. Em janeiro, “Transa”, seu disco mais cultuado, completou 50 anos de lançamento. No dia 7 de agosto, o mestre baiano completa 80 anos de uma vida premiada com grande vitalidade artística e física. Caetano não é muito de olhar para o passado, de ouvir seus discos antigos. Os tributos à “Transa” couberam aos fãs e críticos. Caetano olha pra frente. Estava em outra pegada, na estrada, com a turnê do novo álbum, “Meu Coco”, lançado em outubro de 2021.
“Transa” foi lançado na mesma época em ele foi autorizado pela ditadura militar a voltar em definitivo para o Brasil, após a temporada de exílio em Londres, iniciada em julho de 1969 ao lado do amigo Gilberto Gil. A alegria alegria do tropicalismo era uma lembrança distante. A barra tinha pesado à sombra do AI5, como Caetano lembrou em 2020 no documentário “Narciso em Férias”. Com os dois discos gravados em Londres, ele exibia as marcas do desterro na vida e na música.
Caetano costuma lembrar “Transa” nos shows. Na atual turnê, o disco está representado pela faixa de abertura, “You Don’t Know Me”, síntese do estado espírito de um melancólico Caetano tentando se adaptar à nova vida, entre o inglês e o português, experimentando os novos sons que lhe chegavam na Swinging London e evocando suas raízes na música popular brasileira – cita trechos de “Maria Moita”, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, e “Reza”, de Edu Lobo e Ruy Guerra. Suas canções do exílio foram marcadas por tristeza e esperança, Dorival Caymmi e Beatles, capoeira e reggae, saudade de casa e desbunde cosmopolita.
Era um passo além do disco que havia apresentado em 1971, com seu nome, produzido pelo britânico Ralph Mace e gravado no Chappells Studios. Para dar maior estofo sonoro no trabalho seguinte, Caetano chamou ao estúdio Jards Macalé (guitarra, violão e direção musical), Moacyr Albuquerque (baixo), Áureo de Souza (bateria) e Tutty Moreno (percussão), com participações especiais de Gal Costa nos vocais e de uma então desconhecida Angela Ro Ro figurando na gaitinha de boca.
Os primeiros instantes do exílio foram dolorosos para Caetano. Roberto Carlos o visitou em Londres e, comovido pelo baixo astral do baiano, compôs para ele, com Erasmo, “Debaixo dos Caracóis dos seus Cabelos”, abrindo uma janela para o amigo vislumbrar a volta para casa (“Um dia a areia branca / Teus pés irão tocar / E vai molhar seus cabelos / A água azul do mar”).
Caetano estava musicalmente mais seguro e melhor adaptado quando concebeu “Transa” em um caldeirão fervilhante de experimentação. Das sete faixas, apenas duas são cantadas só em português: “Mora na Filosofia”, releitura lisérgica do samba de Arnaldo Passos e Monsueto Menezes; e “Triste Bahia”, na qual, a partir de um poema de Gregório de Matos, ele avança para uma épica viagem sonora observando sua terra natal com um olhar ao mesmo tempo saudoso e crítico. Presença constante nas turnês anteriores, “Triste Bahia” é uma das canções mais emblemáticas de Caetano, pelo vigor lírico e, sobretudo, pela complexidade musical, percorrendo psicodelia progressiva, samba de roda, capoeira e afoxé.
Nas faixas cantadas em inglês, Caetano imprime as citadas referências de “You Don’t Know Me, funde Beatles com Caymmi, Vinicius, Baden Powell e Zé do Norte (“It’s a Long Way”) e incorpora, de forma pioneira, o reggae que chegava a Londres com os imigrantes jamaicanos (Nine Out of Ten).
Em 2012, na ocasião dos 40 anos de “Transa”, conversei com Caetano sobre o disco para o jornal Zero Hora. Reproduzo aqui alguns trechos editados.
Exílio
“Saímos daqui enxotados. A Polícia Federal me pôs no assento do avião. Fomos para Lisboa, onde encontramos nosso empresário, Guilherme Araújo, que tinha ficado lá desde que, tendo ido para preparar a apresentação de Gil no festival Midem, soube de nossa prisão e distribuiu um panfleto de protesto contra a ação das forças de repressão brasileiras. Ele ficou uns 10 dias conosco em Portugal, mas sabíamos que lá não íamos ficar, o país ainda estava sob a ditadura salazarista, embora Salazar já tivesse morrido. De lá, fomos para Paris, onde ficamos um tempo. Guilherme achava que devíamos ir para Londres, por ser mais pacífica e por ter uma cena musical rica. Paris, que não tinha um pop moderno forte, estava na ressaca do maio de 68, a polícia pedia seus documentos a cada esquina. Londres era a escolha mais sensata. Mas eu apenas me resignei. Gostei do clima sem medo e da grama verde. Mas estava muito triste por dentro. Não tinha projetos nem desejos. Aí (o produtor) Ralph Mace apareceu propondo que gravássemos discos”.
Concepção de “Transa”
“Eu me sentia um cidadão do Brasil. Não me imaginava vivendo e trabalhando na Inglaterra.
Nesse segundo ano na Inglaterra, já começava a gostar de lá, e a depressão pelo exílio ia me deixando. Depois, chamei Macalé, Tutty, Áureo e Moacyr. Com essa banda, dava para testar ideias, experimentar tipos livres de arranjos. No primeiro disco, eu tinha ficado passivo, seguindo as orientações dos produtores, mesmo que essas orientações fossem no sentido de ser mais eu mesmo. Por exemplo, só então gravei tocando eu mesmo o violão. Gravamos o disco em quatro sessões. Foi quase ao vivo no estúdio. E as citações de canções brasileiras mais antigas me consolavam da falta que sentia do Brasil. As composições eram minhas. Eu as levava de casa para o estúdio de ensaio com as ideias de intercalação de trechos de outras canções já desenvolvidas. Também as ideias de arranjo eram basicamente minhas. Mas é claro que a qualidade e a inspiração dos músicos que tocavam comigo definiram o som a que chegamos. E Macalé tinha a responsabilidade de orientar o jeito da banda pôr em prática essas minhas ideias. Macalé tinha intimidade comigo havia anos. Assim, eu me sentia desinibido para me comunicar. Além disso, ele tem um estilo muito pessoal de tocar violão, e eu já o convidei pensando nisso. Pedi que ele dirigisse nossa banda, e tudo fluiu com muita naturalidade”.
Relação afetiva com o disco
“Eu gostei dele quando o fiz. Mas o achei mais satisfatório com o passar do tempo. Mas o fato é que não ouço meus discos quase nunca. Então, não sei direito. Adorava “Triste Bahia” e “Mora na Filosofia”, mas acho que é porque eram as duas cantadas só em português. Outro dia, vendo o filme “Coração Vagabundo” (documentário de Fernando Gronstein Andrade), ouvi um som genial e moderno. Fiquei me perguntando: que banda incrível é essa? Depois de um tempo, reconheci: era “Neolithic Man”.
“Triste Bahia” e o poema homônimo de Gregório de Mattos
“Esse poema me impressionava muito. Gozado é que, na edição das obras dele que eu tinha, um verso estava transcrito errado. Em vez de “rica te vi eu já”, tinha “Rica te vejo eu já”, repetindo o verbo no presente. Gravei com esse erro, que, sem saber que era erro de impressão, me pareceu até rico poeticamente. Me lembro de ter pensado em fazer uma base à moda dos cantos de capoeira – e de sugerir que Tutty tocasse o berimbau em três afinações diferentes, superpondo-os para formar um acorde na abertura. O jeito de tocar ia sendo burilado nos ensaios. A ordem das citações era fixa. Fiquei muito feliz com o resultado quando a peça foi ficando pronta. A aceleração do andamento aconteceu espontaneamente, e a gente a adotou. Tudo ficou bonito”.
“Nine Out of Ten”, os primeiros acordes do reggae ouvidos fora da Jamaica
“Eu me apaixonei pelo reggae, junto com (o músico) Péricles Cavalcanti, que gostava de passear comigo por Portobello Road. Nem sabíamos ainda o nome do novo ritmo. Quando aprendemos, passamos a repeti-lo em conversas com muita excitação. Quando compus a música, a que, para mim, tem a melhor das letras em inglês que escrevi, pedi a Moacyr Albuquerque, o baixista, que tentasse reproduzir a linha de baixo dos reggaes que ouvíamos. E ele foi perfeito nessa pioneira entrada do reggae na música brasileira. Ouvir a música dos jamaicanos naquela rua me fazia gostar de viver, ajudava a superar a saudade do Brasil. Compor e cantar era conseguir resistir”.
“It’s a Long Way” e os Beatles
“Os Beatles tinham sido essenciais no nascedouro do tropicalismo. O Gil me chamou a atenção para a inventividade do grupo em 1966. Um ano antes, (a cantora) Marília Medalha tinha observado que “Eleanor Rigby” era uma canção linda. Mas o grupo de Liverpool ainda não era aceito nos meios sérios da MPB. Eu os adorava. Quando chegamos a Londres, “Abbey Road” estava para ser lançado, e o grupo se desfazia. Os Rolling Stones estavam na crista da onda, com um rock mais rock e sem riscos de desaparecer. Eu adorava Beggar’s Banquet. E, claro, Satisfaction tinha sido hit no Brasil antes de sairmos. Mas só vim a adorá-los quando os vi no palco. Nossos preferidos, antes de irmos para Londres, eram os Beatles, Jimi Hendrix, Janis Joplin e The Mothers of Invention. Também James Brown e figuras do blues, como John Lee Hooker. Mas já conhecíamos Pink Floyd e The Who. Lá, conhecemos Led Zeppelin, T-Rex, que eu adorava, Faces, Bowie, que eu não gostei quando vi. Eu adorava uma banda chamada Incredible String Band. Fui reouvir outro dia e fiquei encantado”.
“Transa” em Londres
Fizemos um show do “Transa” no Queen Elisabeth Hall. Os amigos ingleses que fizemos ficaram bem impressionados, e os curiosos, que foram para ver o que era, ficaram surpresos. Ralph Mace ficou muito animado, achando que uma carreira minha lá se iniciava. Mas, logo que eu soube que podia voltar para o Brasil, nem pensei duas vezes. Não me arrependo”.