Nós, humanos, não gostamos de incertezas. Talvez porque, até onde sabemos, somos os únicos animais capazes de raciocínio abstrato, de modo que, ao imaginar os futuros possíveis, nos incomoda saber que não podemos prever qual deles vai se realizar. Por essas coisas que, por exemplo, mesmo contra todas as evidências científicas, muitos jornais e revistas sérios ainda trazem sua seção de horóscopo!
Apesar do nosso desgosto pela incerteza, quanto mais a ciência evolui, mais encontra evidências que o universo funciona, senão de maneira totalmente aleatória, ou seja, com uma evolução que simplesmente não pode ser prevista, ao menos de forma dominantemente não linear, sem relações diretas de causa efeito, o que dificulta prever com segurança a evolução de muitos sistemas naturais, mesmo que sejam determinísticos1, ou seja, previsíveis se todas suas variáveis forem conhecidas.
Einstein proferiu a frase do título refletindo seu desconforto com a ideia de que os processos que regem o universo podem ser aleatórios e probabilísticos, referindo-se mais especificamente à mecânica quântica. Einstein gostava de dizer que Deus não fazia isso, ou fazia aquilo, a ponto de certo dia o também físico Niels Bohr chegar a dizer para ele: “Albert, pare com essa mania de dizer o que Deus faz ou não faz”.
O Deus de Einstein, no entanto, não era o Deus convencional das religiões. Ele se referia à ordem e ao determinismo das leis que regem a natureza. Ele acreditava que o universo era regido por um conjunto de regras que, uma vez desvendadas, permitiriam se fazer previsões precisas acerca de qualquer processo físico. Um Deus cósmico!
Foi essa filosofia que o levou a formular a teoria da relatividade, que o tornou famoso. No entanto, apenas alguns anos depois de sua teoria ser aceita e popularizada, seus colegas físicos, incluindo os integrantes da “Escola de Copenhague”, da qual Niels Bohr é um dos mais conhecidos, propuseram a teoria da mecânica quântica.
A teoria da relatividade de Einstein explicou muitos aspectos do funcionamento da gravidade e suas leis são de fato determinísticas, ou seja, ao se aplicar uma determinada lei (regra) consegue-se determinar com exatidão a trajetória futura de um corpo celeste, assim como as relações entre energia, massa e velocidade dos corpos em movimento. Mas a mecânica quântica explica o comportamento das partículas muito pequenas (elétrons e uma miríade de partículas subatômicas) através de uma visão de um universo aleatório e probabilístico como o “princípio da incerteza” de Heinsenberg – outro componente da Escola de Copenhague – que postula que “é impossível se determinar simultaneamente com a mesma precisão a posição e a velocidade de um elétron”.
Para os físicos quânticos, o universo é o resultado de interações probabilísticas entre as partículas e, portanto, é construído a partir de uma evolução aleatória e imprevisível. Segundo essa visão, ainda que muitos processos tenham de fato leis que permitem prever a evolução de certos sistemas de maneira aproximada – como são as leis da gravitação universal de Newton e a própria teoria da relatividade –, nunca se poderá prever a evolução do universo com precisão.
Einstein não gostava dessa ideia e permaneceu até o final de sua vida tentando encontrar a tal “teoria de tudo” (ou teoria unificada), que permitiria unir a teoria da relatividade com a mecânica quântica. Outro físico muito conhecido que também tentou conceber “uma teoria de tudo” foi Stephen Hawking. Ambos falharam nessa tentativa e, embora muitos cientistas continuem questionando a visão puramente aleatória, a mecânica quântica se tornou uma das mais bem sucedidas e experimentalmente comprovadas teorias da física.
Nesse contexto de incertezas e probabilidades, existe ainda outro conceito que tem explicado muita coisa, e demonstrado que a evolução da maior parte dos sistemas naturais é de fato difícil de prever, mesmo que não seja aleatória. Trata-se do conceito de sistemas não lineares complexos, cuja característica básica é de que os efeitos não são diretamente proporcionais às causas. A variante mais conhecida popularmente dos sistemas não lineares são os chamados “sistemas caóticos”.
O conceito dos sistemas caóticos ficou bastante conhecido a partir da década de 1960, quando Edward Lorenz, estudando sistemas meteorológicos, constatou que mesmo sistemas não lineares com pouco componentes, como a convecção atmosférica, apresentavam uma evolução dependente de pequenas diferenças nas condições iniciais, como, por exemplo, o arredondamento de um número na terceira casa decimal. Ou seja, se a temperatura inicial mudasse de 25,333 °C para 25,332 °C, a evolução dos sistemas poderia ser completamente diferente. Devido à dificuldade de se prever a sua evolução, ele nomeou esses sistemas de caóticos2.
Lorenz proferiu ainda, numa palestra em 1972, a frase que se tornou conhecida como “O Efeito Borboleta”. Disse ele: “Se uma borboleta bate as asas no Brasil, se forma um tornado no Texas”? Embora se encontre outras versões, a frase original é essa mesma, com a borboleta no Brasil! E se tornou a melhor ilustração deste tipo de sistema.
É importante ressaltar que o Efeito Borboleta não diz que todas as pequenas mudanças nas condições iniciais causam grandes efeitos. Mas que pequenas mudanças em algumas condições iniciais, as quais só se fica sabendo depois do sistema evoluir, podem causar grandes diferenças. E é exatamente isso que torna a evolução dos sistemas não lineares tão difícil de prever.
Os sistemas meteorológicos estudados por Lorenz são de fato um bom exemplo de sistemas não lineares. Mesmo atualmente, com todo o conjunto de dados de satélites, radares e outros sistemas de medição e monitoramento espalhados pelo mundo, as previsões da meteorologia se tornam imprecisas para períodos mais longos do que cinco dias. Não é culpa dos meteorologistas. É por causa da borboleta!
Toda essa longa introdução serve para dizer uma coisa: os sistemas naturais, ainda que sejam intrinsecamente determinísticos (ou seja, há um conjunto de regras que explica seu comportamento), são complexos e não lineares, o que torna difícil de prever sua evolução, como são as consequências do aquecimento global no clima, incluindo as mudanças climáticas especificamente e seus outros efeitos como o derretimento das geleiras, as mudanças nos ecossistemas marinhos e terrestres e muitos outros.
É por isso que o IPCC (sigla em inglês do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas da ONU) apresenta suas estimativas utilizando a probabilidade dos eventos acontecerem, com termos como “provável” (60-100% de probabilidade), “muito provável” (90-100% de probabilidade) e “extremamente provável” (95-100% de probabilidade).
Assim, por conta da grande quantidade de variáveis e das relações não lineares entre elas, é difícil prever com exatidão o que vai acontecer com o clima. Mas é possível se estabelecer probabilidades, como faz o IPCC. Naturalmente, mesmo as probabilidades são estimativas baseadas em dados incompletos. Portanto, podem ser imprecisas. Por isso, muitos negacionistas se apegam aos cenários mais otimistas, ou seja, os que preveem um efeito menor do aquecimento, para argumentar que o problema não é tão sério assim.
No entanto, o que se tem observado nos últimos anos é justamente o contrário. Os modelos do IPCC têm se mostrado otimistas ou, em outras palavras, excessivamente cautelosos. Isso é compreensível, pois o IPCC já foi muitas vezes tachado de tendencioso ou alarmista. Então, para não atiçar ainda mais seus críticos e adotar uma postura rigorosamente científica, que desse menos margem a questionamentos, o IPCC adotou uma abordagem mais cuidadosa.
Isso, porém, pode se revelar um problema porque, se quisermos nos preparar de forma adequada para as transformações que estão e irão acontecer no planeta, temos que considerar não os cenários prováveis, mas os piores. Nesse caso, vale mais a abordagem de segurança e prevenção de acidentes, como a Lei de Murphy, que descrevi na coluna da semana passada.
Embora a frequência e a intensidade de tempestades e ondas de calor, e fenômenos estejam se revelando mais graves do que os modelos do IPCC previam, em nenhum caso os “erros” se revelaram tão grandes como o caso do derretimento das geleiras (na verdade, não se trata exatamente de “erros”, porque estavam previstos no cenário mais extremo – apenas não constavam como os prováveis).
Em média, as geleiras em todo o mundo perderam cerca de 267 bilhões de toneladas de gelo por ano entre os anos 2000 e 2019. Essa quantidade vem aumentando, com uma perda de aproximadamente 298 bilhões de toneladas por ano entre 2015 e 2019. A quantidade de gelo perdida anualmente quase dobrou desde os anos 2000. Por exemplo, entre 2000 e 2004, a perda média global era de 227 bilhões de toneladas, mas aumentou para 298 bilhões de toneladas por ano no final dos anos 2010. Muito acima do previsto pelos modelos dos cientistas climáticos.
O que ocorre com o degelo é um exemplo de um sistema não linear complexo em ação. Os modelos dos cientistas consideravam basicamente os efeitos do aquecimento da atmosfera, adicionando, no caso das geleiras que desembocam no mar, um pequeno efeito do aumento da temperatura da água dos oceanos.
Mas há um componente que foi ignorado: a água mais quente que entra por baixo das geleiras, próximo ao seu contato com o mar. A ocorrência de uma película de água abaixo das geleiras era conhecida, devido aos efeitos da pressão e atrito nas rochas. Mas o que não se esperava era que o aquecimento dessa água tivesse um impacto tão grande no deslocamento da geleira, devido ao incremento de seu efeito de “lubrificação” na base.
Mas verificou-se que um pequeno aumento na temperatura dessa água causa um grande impacto na velocidade de deslocamento da geleira. Um claro exemplo de um sistema não linear em ação. Assim, ao aumentar a velocidade de transferência do gelo para o mar, aumenta-se a taxa de derretimento, com consequências para todo o corpo glacial.
O derretimento das geleiras causa, entre outros efeitos, o aumento do nível do mar. E aqui há outro sistema não linear e extremamente complexo que tem que ser levado em consideração: o próprio oceano. Devido à interação de muitas variáveis e ao nosso desconhecimento do que ocorre nas suas profundezas, sabemos que o mar vai subir, mas é difícil prever quanto e quando. Uma elevação de grandes proporções pode levar centenas de anos, ou acontecer rapidamente durante as próximas décadas.
O caso do degelo e da subida do nível do mar é apenas o exemplo mais evidente3. Mas em todos os tipos de mudanças climáticas estão acontecendo coisas parecidas. Sabíamos que o Rio Grande do Sul estaria sujeito a chuvas e inundações, mas não esperávamos que viessem com tamanha intensidade. Sabemos que, com o advento do La Niña, no próximo verão, ocorrerão chuvas intensas nas regiões Norte, Nordeste e, provavelmente, até no Sudeste do Brasil, mas é difícil prever onde serão mais catastróficas. Era previsto que ondas de calor e incêndios florestais seriam mais frequentes e intensos no hemisfério norte, mas ninguém esperava que viessem com tal proporção.
Apesar das dificuldades em se fazer previsões precisas, vimos que o sistema climático não é aleatório. Sua evolução pode ser estimada utilizando-se cenários mais ou menos prováveis. Com tudo que temos aprendido a respeito, podemos dizer que as mudanças climáticas causadas pela emissão de gases de efeito estufa pela humanidade vieram para ficar, e vão aumentar em intensidade. Quanto a isso, praticamente não há incerteza. Voltando ao velho Einstein: “Deus é sutil, mas não é malicioso”.
1Sistemas aleatórios são aqueles cujo resultado é impossível de prever, como, por exemplo, jogar uma moeda, dados ou um sorteio de loteria (desde que não haja algum truque). Já Sistemas determinísticos são aqueles cuja evolução ou resultado pode ser previsto desde que as regras básicas que regem seu funcionamento sejam compreendidas.
2Sistemas caóticos são muitas vezes confundidos com sistemas aleatórios, mas isso é um erro. Eles são um tipo de sistema não linear complexo. Sistemas lineares são aqueles em que o resultado é função direta da causa, como força e aceleração (F= m.a). Em sistemas não lineares, essa relação não é direta. Um exemplo simples é o pêndulo, cujo movimento é não linear devido à força da gravidade, que varia com o ângulo de deslocamento. O sistema atmosférico e climático é altamente não linear, com interações complexas entre diversos fatores como temperatura, umidade e pressão atmosférica.
3Uma descrição mais completa dos sistemas naturais não lineares complexos é apresentada no meu livro “Planeta Hostil”, que pode ser encontrado em livrarias de todo o Brasil e em lojas online.
Observação final: para vídeos e textos adicionais, confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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