Felizmente, a vida daquelas pessoas que se especializaram em esconder seus bens dos credores, ou que se negam a apresentar documentos nos processos ou confessar seus atos, que descumprem as decisões judiciais, entre várias outras infrações e falcatruas e que seguem tendo uma vida maravilhosa e dispendiosa desfrutando de carros de luxo, de viagens fantásticas para estações de esqui ou praias paradisíacas, frequentando hotéis, festas, restaurantes e clubes caríssimos, participando de concursos públicos ou licitações, ficou um pouco pior.
Isso foi graças ao reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da constitucionalidade de disposições do Código de Processo Civil (CPC) que permitem aos juízes a imposição de várias medidas coercitivas, indutivas ou sub-rogatórias, como, por exemplo, a apreensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), a suspensão do direito de dirigir, a apreensão de Passaporte e a proibição de participação em concursos públicos ou em licitações.
Importante destacar que esse julgamento, ocorrido no dia 09 de fevereiro recente, decidiu pela improcedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5941 (ADI 5941) movida pelo Partido dos Trabalhadores (PT) que, em síntese, pedia a declaração de inconstitucionalidade dos artigos do CPC, que permitem aos juízes determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.
Conforme salientado no BOLETIM DE FEVEREIRO DE 2023 (CIVIL E PROCESSO CIVIL) do STF EM FOCO, existem medidas típicas diretas de execução, como, por exemplo, a “adjudicação, a alienação ou apropriação de frutos e rendimentos de empresas ou de estabelecimentos e de outros bens do devedor”, que são atos judiciais que permitem a transferência da propriedade, venda e penhora de bens, e “medidas típicas indiretas”, que “são meios de coerção sobre a vontade do devedor, com o objetivo de compeli-lo a realizar – senão de forma espontânea, ao menos voluntariamente – a prestação devida, tais como a penhora, a multa (astreinte) e a prisão (alimentos), todas previstas no CPC.
Essa ADI, no entanto, visava declarar a inconstitucionalidade das medidas atípicas de execução, que são aquelas que embora não estejam especificamente previstas na lei, são determinadas pelo juiz com base em uma “cláusula genérica” que permite a imposição, pelo juiz, de outras medidas coercitivas, indutivas, mandamentais ou sub-rogatórias.
A este passo, vale esclarecer que uma medida coercitiva visa forçar o cumprimento de uma ordem judicial, sob pena de a violação da obrigação se tornar mais desfavorável para quem a descumpre, por exemplo, uma multa diária. O significado do que é uma “medida indutiva” no CPC, ainda não está suficientemente esclarecido pela doutrina e nem pelo judiciário, sendo que muitos entendem que é uma subdivisão das medidas coercitivas.
Para esses, medidas indutivas teriam a ver com a prisão, o cumprimento da determinação judicial poderia ser exigido sob pena de prisão, e isso seria diferente de uma prisão por dívida. Entretanto, o legislador não brilhou com a inserção dessa expressão “indutiva”, cuja definição ainda é uma incógnita, não está clara no ordenamento jurídico brasileiro. As medidas mandamentais são aquelas que produzem alguns efeitos de uma decisão de cunho constitutivo, mas que não são a própria tutela pretendida, ou seja, não são aquilo que foi requerido pela parte, são uma ordem que pode ser destinada para as partes em um processo, ou até mesmo para um terceiro. As medidas sub-rogatórias são aquelas que podem ser atribuídas a um terceiro, sem a colaboração ou participação do ordenado, com resultado idêntico.
A Decisão do STF
Segundo a Decisão de Julgamento, publicada pelo STF, em 09/02/2023 (ver aqui), “O tribunal, por unanimidade, conheceu da ação direta, com ressalva do Ministro André Mendonça, que dela não conhecia no que tange ao art. 390, parágrafo único, do CPC. Por maioria, julgou improcedente o pedido, nos termos do voto do Relator, vencido, em parte, o Ministro Edson Fachin, que julgava parcialmente procedente a ação. Presidência da Ministra Rosa Weber.”.
Outrossim, consoante publicado no Boletim do STFEMFOCO, de fevereiro de 2023, o STF ao julgar a ADI 5941 improcedente, declarou a constitucionalidade do artigo 139, IV, do CPC, “por entender válida a aplicação concreta de meios de execução atípicos, tais como, mas não só, a apreensão da Carteira de Habilitação (CNH) e de passaporte, a suspensão do direito de dirigir e a proibição de participação em concurso e licitação pública, desde que não se avance sobre direitos fundamentais e, ainda, observados os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e menor onerosidade”.
Como se verifica, o STF desde já deixou claro que não se poderá avançar sobre os direitos fundamentais, e que os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e menor onerosidade precisam ser respeitados. Ademais, a medida deve ser aplicada “do modo menos gravoso ao executado”. Dessa maneira, cada pedido deverá levar em consideração esses parâmetros.
O princípio da proporcionalidade exigirá que o juiz escolha, para a realização do fim almejado, meios adequados, necessários e proporcionais. Pelo princípio da adequação, a medida deve estar em consonância com a sua finalidade; e de acordo com o princípio da razoabilidade, ao aplicar-se as normas legais ou medidas, deve-se levar em consideração aquilo que normalmente acontece para determinar as medidas, e não aquilo que acontece de forma extraordinária.
Obviamente continuará sendo uma tarefa muito difícil a obtenção de uma medida coercitiva, há de ser bem demonstrado no processo a necessidade desse tipo de medida, que a parte credora já fez tudo que estava ao seu alcance para penhorar bens do devedor, para obter o cumprimento da obrigação, que o devedor tem condições de pagar sua dívida ou cumprir sua obrigação, mas que se recusa, que a medida não ofende a dignidade do devedor etc. Por exemplo, pode ser proporcional, adequado e razoável suspender a CNH de um devedor que dirige um carro caríssimo e se recusa a pagar uma dívida, mas obviamente se ele for um motorista de Uber ou um taxista não será razoável, pois isso inclusive o impedirá de continuar trabalhando, de ter uma vida digna, e irá lhe gerar mais dificuldades para pagar seus credores. Também faz sentido apreender o passaporte de alguém que gasta milhares de dólares em viagens de turismo e não paga seus credores, mas não será proporcional, adequado e razoável apreender o passaporte de um piloto de voos internacionais, pois isso impedirá que ele continua a exercer seu trabalho.
Vale salientar que existem julgamentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que decidiram que a apreensão da CNH do devedor não fere o direito à locomoção, que a restrição do uso do passaporte do devedor não fere direito fundamental.
Essa decisão do STF já está reverberando e, em 24 de fevereiro passado, foi noticiado que um juiz do foro de Jales, São Paulo, determinou a suspensão, pelo prazo de 1 (um) ano de uma CNH de uma devedora de dívida pecuniária e de uma obrigação de fazer. Evidentemente essa decisão do STF também repercutirá no STJ, que provavelmente vai seguir a mesma linha jurídica no julgamento de processos em que as possibilidades de utilização dessas medidas coercitivas são discutidas. Parabéns ao STF!