No episódio 102 do podcast “Elefantes na Neblina” é citado um evento que ocorre durante as filmagens de “Fitzcarraldo”, dirigido por Werner Herzog, quando a equipe estava na Amazônia e encontrou uma enorme cachoeira. A população indígena local dizia que, embaixo daquela cachoeira, existia uma caverna sagrada e que lá moram os deuses. Esta caverna era impossível de ser acessada. Na equipe de filmagem tinha um exímio escalador, que desceu a cachoeira por uma corda com uma câmera e conseguiu filmar a tal caverna sagrada. Quando o Herzog teve acesso, ele decidiu destruir o filme da caverna para que ela continuasse sendo sagrada. Os debatedores do podcast discutem a atitude de Herzog. O que chamou a atenção da opinião pública foi o fato dele ter se autocolocado um limite, embora pudesse revelar o segredo da caverna, optou por respeitar o sagrado.
Ouvindo este podcast, eu me perguntei se o Herzog teve neste caso um comportamento realmente ético? Se ele já sabia que a caverna era sagrada para os índios, por que deixou o escalador filmar? E se tivesse algo de excepcional na caverna, será que ele destruiria o filme? Depois pensei, talvez no período entre autorizar a filmagem e ver o filme, ele tenha se dado conta de que foi antiético e resolveu corrigir seu erro. Aqui surgiu uma dúvida sobre o que é ser ético neste caso. Eu encontrei uma definição de ética dada por Mário Sérgio Cortella que me pareceu muito adequada, que diz: “Ética é um conjunto de valores e princípios que usamos para decidir as três grandes questões da vida: quero, devo, posso. Tem coisa que eu quero, mas não devo, tem coisa que eu devo, mas não posso e tem coisa que eu posso, mas não quero.”
O conceito mais usual diz que “ética é o conjunto de princípios e valores morais que orientam o comportamento humano, ajudando a definir o que é certo ou errado, bem ou mal”. Como somos humanos, imperfeitos e sujeitos a cometer erros, eventualmente podemos ter alguma atitude que possa ser considerada antiética, mas isto nos tornará um sujeito antiético? E se cometermos uma atitude considerada antiética, temos como nos redimir? Tendo senso crítico e humildade, poderemos reconhecer, assumir o erro e reparar os eventuais danos. Ou até mesmo discutir se tal atitude foi ou não antiética, dado que existem muitas interpretações para cada situação.
Vamos analisar o caso do motorista que ultrapassa o sinal vermelho na madrugada, quando as ruas estão vazias. Ele cometeu uma infração conscientemente e, portanto, foi antiético? E se, ao respeitar o sinal, for assaltado? O Estado que multa é o mesmo que não garante a segurança do motorista parado no semáforo.
Me chamou a atenção que Cortella simplifica a definição de ética a três palavras: “quero, devo e posso”. Vivemos um tempo em que, se o “quero e posso” estão juntos, nada mais importa, para que se perguntar se “devo ou não fazer?”. Como diz Renato Janine: “A ética é mais exigente que a lei. Isso significa que há condutas que são legais, mas que nem por isso são decentes, corretas”. Diz ainda que a ética não tem recompensa externa, mas que a pessoa sentir que agiu bem já é uma recompensa por ter sido ético. Cortella complementa: “Quando você tem paz de espírito? Quando aquilo que você quer é o que você pode e o que você deve.” Parece complicado ocorrer esse alinhamento, mas tudo depende do que a gente quer, para que o poder e o dever se encaixem.
Por fim, existem fatos que ocorrem ao longo das nossas vidas e que guardamos como segredos, sejam nossos ou de outras pessoas. Às vezes se referem à intimidade de relacionamentos anteriores, segredos revelados por amigos ou mesmo fatos da atividade profissional que podem ser revelados, mas, lembrando a atitude de Werner Herzog, merecem permanecer “sagrados”. Cada um de nós tem a sua caverna sagrada para preservar. Revelar o que tem lá dentro não interessa tanto aos outros, mas diz muito de quem somos nós.
Referências:
- Elefantes da Neblina - #102: O Centro e a Fronteira
- O que é ética – Mario Sérgio Cortella
- A ética é mais exigente que a lei – Renato Janine
Foto da Capa: Gerada por IA / Freepik
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