Sempre que vejo a questão da não-monogamia em pauta, me recordo de um amigo que, surpreso com a sua própria ingenuidade, um dia me falou do sentimento estranho que teve quando viu pela primeira vez um outro paciente aguardando na sala de espera para ser atendido pelo seu psicanalista.
Entre risos e um tanto de vergonha, este meu amigo me contou que se sentiu traído.
É claro que ele sabia racionalmente que seu terapeuta atendia vários pacientes no mesmo dia. Mesmo assim, ter visto uma outra pessoa ali sentada esperando pela sua sessão despertou a certeza de não ser único, de não ocupar um lugar de exclusividade do tempo e do cuidado daquela pessoa a quem ele confessava seus medos e desejos mais íntimos.
Na época, lembro de ter feito uma brincadeira dizendo que não à toa dizemos que nós, psicanalistas, temos nossos casos. Casos clínicos, claro. Mas, mesmo assim, casos.
Se o leitor porventura já tiver deitado em um divã, sabe como o processo de análise mobiliza questões muito delicadas e, muitas das vezes, traz à tona problemas de relacionamento e formas viciosas de amarmos e sermos amados.
Neste sentido, o meu amigo denunciava algo que todo neurótico sabe em alguma medida: nós sempre nos supomos os únicos merecedores da atenção e do cuidado daqueles que amamos.
Será que meu analista me escuta com a mesma empolgação que escuta este outro paciente que está aqui na sala de espera? Será que sou um “caso” especial, que meu terapeuta vai escrever sobre mim? Ou será que, pelo contrário, minha vida é tão entediante que ele fica contando os minutos para a sessão acabar?
Curiosamente, estas também são perguntas que fazemos em nossos relacionamentos amorosos. Será que sou alguém realmente interessante ou a pessoa só está comigo por conveniência? Será que se eu fosse mais bonito ou mais inteligente eu ficaria tranquilo com relação ao que o outro sente por mim? E se eu parecesse uma dessas estrelas de televisão, será que minha vida amorosa seria mais promissora?
No plano social, a problematização da monogamia traz para o debate público as formas enrijecidas de amar e ser amado, especialmente no que se refere ao sentimento de posse e, consequentemente, de ciúmes. Muitos antropólogos já se debruçaram sobre este tema, sobre o lugar de objeto de troca que as mulheres ocupavam nas sociedades primitivas – e que, infelizmente, ainda ocupam em nossos tempos.
Tanto assim que hoje em dia ainda vemos com frequência relatos de crimes “passionais” cometidos por homens que mataram suas parceiras porque elas simplesmente olharam para outro lado, mantiveram algum caso extra-conjugal ou tão somente quiseram dar fim ao relacionamento. A lógica estrutural que se explicita aí é a de posse sobre o outro: “se não for minha, não será de ninguém”.
São comuns os relatos no consultório de pessoas cujo receio de não serem amadas ser tão grande a ponto de buscarem nos sonhos do parceiro algum indício de traição: se sonhou com tal pessoa, é porque há um interesse aí. Para o ciumento contumaz, mesmo o pensamento é perigoso, mesmo a fantasia é traiçoeira. O ciumento busca no outro a certeza do amor, e muitas vezes quer saber exatamente por que é amado: algo que, quase sempre, nem mesmo o outro sabe.
O que nos traz para o plano singular da discussão e para o papo com o meu amigo.
Faz sentido nos supormos únicos para quem amamos, afinal, nossa primeira relação amorosa, com a nossa mãe (ou quem ocupou seu lugar), foi monogâmica. Há um momento do nosso processo de subjetivação em que nos supomos seres especiais e em que efetivamente temos a exclusividade da atenção de alguém – e pior: também é um momento em que estamos completamente vulneráveis, profundamente dependentes do outro.
Muitas vezes os ciúmes têm como causa a percepção de que qualquer desvio de atenção do parceiro, qualquer olhar enviesado ou qualquer demonstração de afeto com outro seja entendido como uma ameaça, ou como uma invasão em um suposto estado de harmonia.
A discussão a respeito da não-monogamia traz à baila o aspecto sociocultural de uma estrutura de organização e fixação de lugares e papéis a serem desempenhados no jogo das trocas amorosas. Em uma época em que finalmente estamos nos ocupando de forma séria em pensar as estratégias históricas de segregação e violência como o racismo, o machismo e a homofobia, é muito salutar que o sistema monogâmico também seja tensionado.
Se estas problematizações não servirem para mudarmos a nossa forma de ser no mundo, que pelo menos elas nos permitam desnaturalizar e desmistificar formas de opressão que, justamente por serem estruturais, acabam se tornando invisíveis aos olhos menos críticos.
E essa é uma discussão que ganha muito se levarmos em conta aspectos singulares do psiquismo, o que passa pela não-imposição de uma forma de amar ou de fazer laço com os outros. Até porque, ainda que conscientes e preocupados com o contexto mais amplo, somos filhos legítimos do caldo cultural em que nascemos e em que estamos inscritos.
Afinal, como bem mostrou o meu amigo, todo mundo é racional e progressista até ter a sua própria neurose questionada.