Dentro de mais alguns dias (8 de dezembro), fará trinta anos da morte do grande compositor Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1927-1994). Nos seus últimos anos, diz Ruy Castro, Jobim estava trabalhando sobre a obra de um outro carioca famoso, o irônico cronista de Vila Isabel, Noel Rosa (Tom era da Tijuca), e o que poderia ter saído dessas duas cabeças musicalmente privilegiadíssimas estaria repercutindo até hoje, tal o grau de perenidade estética que Jobim era capaz de imprimir à sua obra. Reconheçamos que depois de Tom se fez pouca coisa de realmente excepcional neste país, em termos musicais, daí porque seu desaparecimento, naquele fatídico 8 de dezembro de 1994, me provocou uma reação imediata: Os grandes não morrem! Mais tarde, resignado à pura verdade do fato, ofereci-me um suplemento de consolo: Os grandes não morrem como os pequenos!
Uma amiga francesa, ao conhecer a obra de Tom, que eu lhe havia apresentado, chegou certa vez a me (e a se) perguntar “como é que a Humanidade teria podido viver tanto tempo sem a música de Jobim!?”. Estou de acordo e, embora reconheça que “nenhum poema jamais pode impedir Auschwitz”, quer dizer, o poder da Arte de se contrapor à barbárie é restrito e mesmo insignificante, estou certo de que a obra de Tom poderia ter impedido as Cruzadas, a Guerra dos Cem Anos; que Átila, ao ouvir “Fotografia”, teria desistido de invadir Roma; que Stálin, ouvindo “Olha Maria”, teria perdoado Trotsky…
O que me surpreende, na obra de Tom, não é – como quer o chato do Tinhorão – que ela reflita a tranquila e “alienada” classe-média-zona-sul do Rio dos anos 50/60, e obtido a repercussão mundial que logrou alcançar: as cidades secretam música, e privilegiada é aquela cidade que dispõe de uma música absolutamente sua, como a Valsa em Viena, o Jazz em New Orleans, o Frevo em Recife. O surpreendente, dizia, é uma música (e um músico) criar uma cidade. Pois é: O RIO DE JANEIRO É UMA INVENÇÃO DE TOM JOBIM!
As pessoas de minha idade são definitivamente marcadas pelos temas cariocas de Tom, influenciadas pela ficção que ele e Vinicius produziram a respeito de um Rio mais imaginado do que real. Porém, um Rio tão encantador que, simplesmente, não é possível chegar àquela cidade sem lembrar o “Samba do Avião” e se debruçar na janela para ver a “praia brilhando (e) a pista chegando…”, ou esperar uma colegial fardada (!) passar em frente ao antigo Velozo, admirar uma lua cheia saindo do mar em Copacabana, ou ir à Rua Nascimento Silva, 107 e, diante do pequeno prédio de três andares, imaginar que Ipanema – que “era só felicidade” – ainda poderia ser… Eis a grande função da Arte: facilitar o voo do espírito, deslocar-nos da facticidade da vida e permitir imaginar cidades invisíveis, amores impossíveis, projetos improváveis, onde a existência é bem mais suportável que esta que levamos cá embaixo!
Tenho certeza de que Tom inscreveu seu nome no rol dos grandes pianistas do século XX cuja obra teve alta penetração popular, ao lado de Cole Porte, os irmãos Gershwin, Michel Legrand, Nat King Cole, Ernesto Nazareth…, oferecendo à música brasileira (o “Sambinha de apartamento”), inflexões estilísticas tiradas do Impressionismo francês (sobretudo Debussy), do Cool Jazz e do Samba carioca, com suas melodias extremamente simples e sequências harmônicas sofisticadíssimas!
E enquanto penso em todas essas coisas, vejo na televisão os arrastões, as milícias, a violência, as mortes, a insegurança pública que tomou conta daquela linda cidade sob os últimos governos estaduais: toda a belíssima ficção que nosso Maestro criara a respeito do Rio está sendo rápida e sistematicamente destruída, ao ponto de um transeunte, interrogado por uma repórter, se perguntar “se ainda vale a pena ser carioca”.
Seja como for, mesmo arriscando uma bala que errou de endereço, eu fico com a maravilhosa lírica que Tom Jobim criou. Mas não posso deixar de, numa paráfrase que tomo emprestada de Carlo Pena Filho (1929-1960), aceitar que é do pesadelo dos homens que uma cidade se desinventa…
Todos os textos de Flávio Brayer estão AQUI.
Foto da Capa: Divulgação