Entre 16 e 26 de março de 2023 ocorreu o 29ª Porto Alegre em Cena, na capital gaúcha, no câmbio do Festival Internacional de Artes Cênicas.
A peça “Água redonda e comprida” tem a presença de membros da comunidade Kaingang da região de Porto Alegre. Da criação até a atuação no palco, os Kaingang passam uma poderosa mensagem: a manutenção dos seus modos de existência tanto no plano físico e territorial quanto no plano simbólico da sua cultura.
O roteiro desta peça fala sobre duas entidades: Kame e Kainhru (por vezes grafado como Kamé e Kairu). Talvez não sejam tão conhecidas como as entidades gregas ou romanas (Zeus como o deus supremo ou Eros, o deus do amor). Nem tão conhecidas como o panteão celta (Odin e Thor — devido à indústria cinematográfica norte-americana). No Brasil, talvez seja mais conhecida o panteão da origem africana, como Ogum e Iansã.
É fundamental conhecer a gigante diversidade cultural e material das etnias indígenas. Segundo o último Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010 (sim, há mais de dez anos), o Brasil registrava 274 línguas indígenas diferentes faladas por 305 etnias. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (link aqui) tem o grande desafio de romper com um dos preconceitos mais nocivos: o racismo, ou podemos também denominar de etnismo.
De volta à peça “Água redonda e comprida” do povo Kaigang, além do poderoso conteúdo, a forma é suave e flexível como água. A coreografia realizada pela bailaria contemporânea Geórgia e pela estreante Nayane (Kaigang) é um refresco para os olhos e para a alma. A sonoplastia é belíssima. O salão do teatro é recheado pelo som do pingar suave até as trompetas de uma poderosa tempestade. Não sou crítico de arte, mas como ser humano sensível sinto a beleza desta outra linguagem. E como não associar a beleza da Natureza e destas novas entidades, Kame e Kainhru, ao plano político. É preciso lembrar que a cidade de Porto Alegre vive atualmente o processo de reestruturação do seu Plano Diretor que irá definir as diretrizes para os próximos dez anos.
A peça avança e nos leva em uma viagem pelas memórias do povo Kaigang e faz um contraponto com o presente. Se no passado às águas do Guaíba eram limpas, e já foram protegidas pelas entidades Kame e Kainhru, atualmente estão sob proteção de outra entidade: o Poder Público. Essa entidade é conhecida por vários nomes: Estado, Governo Municipal, Estadual e Federal, dentro outros. Agora é hora do spoiler: quando entra em cena os poluentes, os contaminantes e outros agentes nocivos aos humanos e não humanos, é que a mensagem fica poderosa e nos faz refletir. Afinal, como estamos cuidando dessa entidade viva: nossos rios. Para muitas etnias indígenas, o rio é uma entidade viva. Um ser que nos relacionamos do modo mais íntimo, pois sem ela, não vivemos. Enquanto isso, os “não indígenas” continuam a poluir os solos, os ares e as águas. É no mínimo vergonhoso falar aos quatro ventos que nós, brancos, não indígenas, sabemos cuidar no meio ambiente. Parece que os fatos falam por si. As águas, não limpas, de Porto Alegre falam por si. Águas contaminadas. Águas desrespeitadas
Ao final da peça (outro spoiler), como nos lembra Iracema, liderança do povo Kaigang, é preciso demarcar não só os territórios indígenas, mas também os palcos. Demarcar os palcos. É a arte como forma de emancipação dos humanos não indígenas, ou alguns grupos em posição de poder, que é preciso reconhecer e mudar nossa relação com a Natureza, com Kame e Kainhru e as demais entidades destas outras cosmovisões. É a arte indígena como política crítica, potente e consciente.
Mais em:
AMSELLE, Jean-Loup; M’BOKOLO, Elikia. No centro da etnia: etnias, tribalismo e Estado na África. Editora Vozes Limitada, 2017.
ISA. Acervo digital sobre povos indígenas, populações tradicionais e meio ambiente. Disponíveis em textos, mapas, fotos e vídeos. Link aqui.
KAINGANG. Portal Kaingang: metades clânicas.