O filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders, aborda um tema que é visto com certa repulsa pela sociedade contemporânea: a rotina. Cenas do cotidiano de um faxineiro de banheiros públicos de Tóquio se repetem inúmeras vezes desde seu despertar até o fim do dia. À primeira vista isso pode parecer muito monótono, mas não é. Repetição não é necessariamente rotina, hábito, aquilo que se faz automaticamente sem pensar. Pelo contrário, ela pode ser renovada a cada ciclo, dependendo de como nos dedicamos a ela.
No filme, cada dia tem, para o senhor Hirayama e para nós, à medida que entramos no clima, um sabor diferente. Tarefas automatizadas que todos nós fazemos desde que acordamos – arrumar a cama, escovar os dentes, tomar café etc. – são realizadas por uma personagem que desfruta cada dia como um novo dia. Observa o céu da manhã, escolhe a fita cassete que vai ouvir no carro – apesar do filme ser contemporâneo ao Spotify –, limpa meticulosamente cada detalhe da louça dos banheiros como se fosse uma obra de arte, contempla, no intervalo do almoço, o jogo de luz e sombras que as árvores produzem e faz fotografias com filme de rolo. Tudo isso com uma serenidade que demonstra ter sabedoria para ver diferenças onde normalmente vemos mesmice. O filme tem muita repetição, mas não é só isso. O enredo não vou contar.
Tóquio se parece com qualquer outra cidade moderna. Tem carros percorrendo elevados suportados por pilares que fazem malabarismos para encontrar o solo, às vezes encontrando-o sob cursos d’água. Wim Wenders parece querer mostrar um retrato da ocidentalização do país no pós Segunda Guerra. Em contraste, também mostra lugares como a casa do senhor Hirayama: ambientes resistentes ao que aqui gostam de chamar de progresso. Pequenas “ilhas de atraso” que ficamos sem saber como sobreviveram à ânsia demolidora do mercado imobiliário. Ele mesmo, a personagem, é a imagem de um tempo que já não tem lugar na sociedade contemporânea do Japão. Mas ele não liga para isso.
Um contraponto a essa cidade sem forma, para não dizer disforme, implantada sobre modos de viver de um outro tempo – a cidade antiga –, são os banheiros públicos de Tóquio onde nosso personagem trabalha para deixá-los limpos. Implantados em praças públicas, são muito diferentes entre si e gozam de um refinamento arquitetônico que surpreende o espectador. Que sofisticação! Não são luxuosos. Nada disso. São instigantes, bonitos e elegantes. E cada um com sua personalidade de forma, materiais, cores, texturas.
Pesquisando descobri que The Tokyo Toilet é o nome da iniciativa que distribuiu entre 16 arquitetos renomados a responsabilidade de individualizar cada um dos conjuntos de sanitários. A proposta é a de que os japoneses passem a usar banheiros como os ocidentais, abandonando a prática de cócoras. A semelhança com os banheiros ocidentais fica só nisso, porque se tem coisa repetitiva e sem graça são nossos banheiros públicos. E não são só eles. A despersonalização e pasteurização das cidades é galopante. Não temos onde fixar o olhar para admirar e contemplar a variedade que o ambiente natural nos proporciona. Ou o construído, o da boa arquitetura, sob efeito da luz, do escuro e de suas sombras.
Fica a pergunta: a ausência de sutilezas visuais serenas e sensíveis na cidade não estaria contribuindo para o aumento crescente da ansiedade e depressão que estamos vivendo? Não teríamos mais oportunidades de transformar nossas rotinas em momentos prazerosos se nossas cidades nos oferecessem uma maior riqueza paisagística e estética? Vamos seguir enlouquecendo num mundo poluído visualmente (e não só visualmente!) atrás de uma novidade a cada meia hora, abduzidos por telas de todos os tamanhos que piscam sem parar?
Espero que o leitor encontre um tempinho para pensar sobre isso. Eu, pelo menos, saí do filme com essa firme disposição.
Leia mais textos de Flávio Kiefer aqui.