Imagine a cena…
Um homem de 63 anos chega esbaforido à farmácia. De chinelos de dedo, bermuda e camiseta regata. São 22h01. Dia 3 de janeiro. Ops, é preciso dizer que a história acontece em uma cidade litorânea.
A farmácia já está fechada. Ele bate na porta metálica. Ninguém responde. Insiste. Bate novamente. E de novo.
– Já estamos fechados! – alguém finalmente responde.
– Minha mãe está passando mal. Preciso comprar remédios e Rehidrat para ela, que não para de vomitar! Ela fez ontem 86 anos. Há pouco estava toda feliz e agora está sofrendo. Deixe-me entrar, por favor…
Nem tudo está perdido. Ainda existe humanidade neste mundo. Neste ano de 2025! A porta se abre e ele entra. É o único cliente no interior do estabelecimento.
Não há mais remédios. Mas compra dois Rehidrat, dois Gatorades e sai da farmácia ao lado de duas funcionárias.
Uma delas olha para a frente, para a esquerda e à direita.
Indaga:
– Onde está o seu carro?
Ele explica que veio correndo, que está em um edifício próximo, a três ou quatro quadras.
– Era mais rápido vir a pé do que retirar o carro, abrir e fechar o portão da garagem e dirigir até aqui….
A funcionária diz:
– Recomendo que o senhor também volte correndo. Está perigoso demais. Há muitos assaltos acontecendo nesta região e em toda a cidade.
Ele olha com espanto. A funcionária está séria. Não, não está brincando! Obediente, o homem grisalho volta correndo e veloz – apesar da barriga saliente e dos chinelos de dedos – até o prédio.
Quando chega, enquanto procura no bolso a chave para abrir o pequeno portão, percebe que uma bicicleta com dois jovens se aproxima. Já com a chave na mão, procura na semiescuridão pela fechadura. Quando a bike está a cinco metros de distância, consegue ingressar no prédio e segue em direção ao bloco de apartamentos.
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Tem também essa cena…
(Antes, uma informação: esqueci de dizer – talvez propositalmente – que a história acontece na bela Guarujá – a outrora Pérola do Atlântico – no litoral sul de São Paulo.)
A família – ele, a esposa, a mãe e a irmã – chegou na noite de 1º de janeiro, para aproveitar um apartamento emprestado por uma sobrinha e, ainda, festejar na praia o aniversário da mãe.
No dia 2, acordam animados. Após cantarem algumas vezes o “parabéns pra você!” – e como é bom cantar para quem a gente ama, né? – e de tomarem um farto e animado café da manhã, rumam felizes e “farofeiros” para a praia, que não fica muito longe dali. São, talvez, 800 metros.
Nas mãos, quatro cadeiras, um guarda-sol, um cooler com gelo, cervejas, refrigerantes, sucos, água e algumas frutas. Começava um surto de virose na região. Era preciso levar tudo e não consumir nada das barracas da praia.
Nos ombros, sacolas com protetor solar, palavras cruzadas, toalhas, alguns salgados para beliscar e um único celular, o mais antigo e sem app de bancos. Afinal, todos na cidade informam que há tubarões à espreita, buscando a vez e a hora de roubar celulares e dar mordidas ferozes nas contas bancárias. Melhor não surfar nas ondas da internet!
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Mais uma cena…
Não é fácil chegar até a praia. Não que o caminho seja longo ou difícil. Nem que os objetos levados sejam pesados demais para o percurso de quase um km. No caminho em direção ao mar, há uma grande avenida e, à esquerda, uma faixa de pedestres. Sem semáforo. O homem, de 63 anos, a esposa, de 61, a irmã, de 59, e a mãe, essa jovem que completa 86 anos de vida, ficam cinco minutos parados à espera de atravessar. Sob um sol escaldante.
Pisam na faixa. Deixam claro que querem ir para o outro lado. Nenhum carro para. Nenhum ônibus para. Nem um caminhão para. Ninguém dá passagem aos pedestres nesse violento mar de trânsito!
Cansados, os quatro andam mais duas ou três centenas de metros até uma outra faixa, onde existe um semáforo.
Após dois ou três minutos, quando o sinal chega ao vermelho, finalmente conseguem atravessar, calma e alegremente, a avenida, apesar das duas motos que passam velozmente às suas costas, com o sinal ainda no vermelho. Tudo bem. Não dizem que levar alguns sustos pode ser até benéfico para o coração?
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Mais uma cena dessa crônica, filme, sei lá…
No início, até que nossos quatro personagens sentem um cheiro esquisito. Mas, bravos, eles entram nas areias escaldantes e caminham para esquerda, o mais longe possível do esgoto que corre indecentemente em direção ao mar. No caminho, cuidam para não pisar nas garrafas de cerveja – inteiras ou quebradas – que colorem, como se fossem conchas, a areia da praia.
Eles também percebem que há, nas mesinhas junto aos guarda-sóis, muitas garrafas de cachaça, whisky e vodka. No percurso, procuram desviar das fezes e urinas dos muitos cachorros que curtem sossegadamente a vida ao lado de seus tutores – malfeitores do ambiente – na areia ou dentro do mar. “A prefeitura do Guarujá poderia arrecadar um bom dinheiro se colocasse os guardas para percorrer a praia, como fazem os sorveteiros, para multar toda essa gente”, ele pensa. “Mas duvido que, mesmo sem carregar peso, aguentassem trabalhar no sol….”
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Cena cinco…
A família logo encontra um lugar mais, digamos assim, cheirosinho. E se ajeita. Os quatro passam horas conversando animadamente. Sobre o que conversam? Ora, caro leitor, leitora ou leitore: como é que vou saber? Até que gostaria de contar, mas é impossível descobrir. Do lado direito, há um grupo de amigos que escuta funk, a todo volume. À esquerda, rola um rap. Atrás, duas mulheres e algumas crianças ouvem música latina. Tá certo, à frente tem o mar. Mas quem precisa ouvir as intimidades de uma família ou o som das ondas beijando a areia? Não faz falta não, já que os ouvidos são brindados pelo lirismo da letra e música que chegam pelos aparelhos de som dos vizinhos:
“Vem…/Vem ver o batidão do funk/Vem ver a chapa esquentar/
Vem com a criativa mix/Venha pra cá zuar/No rala quente bem gostoso/Vou fazer tu delirar/Então preste atenção/Porque o BJ vai mandar.
Estique os bracinhos/Na dança do aviãozinho/Oi joga eles pra frente/Na dança do trenzinho/Agora pra ficar legal/Quero ver as gatinhas/Arrastando a geral.
Na dança da bundinha/Oi dança, dança da bundinha/Na dança da bundinha/Oi dança, dança da bundinha/Na dança da bundinha/dá para ouvir o que a bundinha….”
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Cena 6…
Os nossos quatro personagens estão no apartamento. Mesmo sem terem consumido nada na praia, a não ser o que levaram; mesmo sem terem bebido nos dias no Guarujá qualquer gole de água que não fosse mineral; mesmo que em momento algum tenham aceitado que qualquer gelo fosse colocado em seus copos, a virose os atingiu. Será porque foram a dois ótimos restaurantes (onde, que fique claro, não aceitaram que os garçons colocassem gelo nos copos)? Será que foi um vacilo terem escovado os dentes com água comum? O fato é que a mãe e a esposa estão com sintomas violentos da virose. As cenas são fortes. Não daremos detalhes, já que o filme ou a crônica, sei lá, ficaria escatológico demais.
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Tem a história da chuva…
Na noite de 2 de janeiro, quando a família se prepara para sair do restaurante, começa uma forte chuva. Os quatro demoram quase uma hora para conseguir sair do local. Já a caminho do apartamento, seguindo o Waze, o carro por ruas alagadas e por pouco não para. O cenário é de caos. Assustados, decidem voltar por um caminho mais longo, mas provavelmente mais seguro. No dia seguinte, o zelador do prédio informa que, na região em que passaram, carros e, pior, casas e barracos ficaram submersos.
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Penúltima cena…
A família decide ir embora mais cedo. Mesmo doente, arruma tudo rapidamente e parte no sábado pela manhã. Mesmo em um horário tão atípico, a estrada de retorno está lotada. Muita gente faz o mesmo trajeto. Seja por estarem doentes, seja pelo medo de pegarem a virose, as pessoas voltam para São Paulo. A viagem, que normalmente é de uma hora e meia, demora duas horas a mais.
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Última cena (mas a ordem disso tudo poderá ser mudada depois…)
Foi cerca de nove anos antes das cenas ocorridas no Guarujá.
Três desses quatro personagens (só a irmã está em outro lugar) estão no Ceará. Mais precisamente, na Praia do Futuro. Curtem a vida em uma na Crocobeach, uma das famosas barracas daquela praia.
Após algumas horas, nosso personagem diz para a mãe:
– Vamos andar até a outra barraca. Tu queres ir junto?
A mãe diz que prefere ficar lendo ali mesmo, na sombra.
Aparece o garçom e pergunta se querem algo.
– Eu e minha esposa vamos caminhar até próximo da outra barraca e aí voltamos. Enquanto isso, por favor, atendam a minha mãe no que ela precisar.
O garçom diz que não aconselha a caminhada, que é perigoso, que a praia está vazia.
– Vocês deveriam ficar por aqui mesmo ou ir de carro para lá.
A esposa acha esquisito. E comenta, com descrição, para o marido.
– Acho que ele quer que a gente fique aqui consumindo….
O casal avista três guardas. E decide ir até eles.
Os dois contam a história e pedem a confirmação.
– Ele está dizendo isso porque quer que a gente fique na barraca, né?
Um dos guardas responde:
– Ele tem toda razão. Há bandidos que ficam de olho em quem passa, descem e assaltam no meio do caminho. E só terá vocês caminhando até a outra barraca…
A mulher argumenta:
– Mas só levaremos duas garrafinhas de água. Não vamos nem com celular nem com dinheiro!
Ao que o guarda responde:
– É ainda pior. Se vocês não tiverem nada para entregar, eles ficarão mais nervosos, podem bater muito em vocês ou até assassiná-los. Sigam nosso conselho. Vocês não devem ir.
O marido olha para a esposa e diz:
– Veja o nome desta praia! É a própria contradição. Este país não tem futuro.
E isso foi em 2015…
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Foto da Capa: Gerada por IA