Alguns dos melhores textos escritos por Luis Fernando Verissimo são aqueles que brincam com o significado das palavras, produzindo humor por meio de um recurso simples: criar um choque entre o que a palavra é e o que ela parece. É um recurso no qual Verissimo ressalta o caráter, no fim das contas, arbitrário entre o signo, a palavra escrita, e o sentido, aquilo que a palavra deveria querer dizer, mas muitas vezes não diz. Verissimo escreveu um bom número de contos e crônicas lançando mão dessa técnica, mas acho que meus preferidos nessa vertente específica da sua obra são o díptico Palavreado e Mais Palavreado. O centro compositivo das duas crônicas está em usar as palavras em um contexto em que elas parecem outra coisa:
Um dia chega a Cântaro um jovem trovador, Lipídio de Albornoz. Ele cruza a Ponte de Safena e entra na cidade montado no seu cavalo Escarcéu. Avista uma mulher vestindo uma bandalheira preta que lhe lança um olhar cheio de betume e cabriolé, escreve ele em Palavreado.
Depois, em Mais Palavreado, torna o processo ainda mais delirante:
Os dois foram levados à presença de Pantufo, que reclinava sobre um almoxarife, abanado por dezessete lupanares enquanto uma lêndea seminua coçava o seu estrôncio. A sala do trono era toda decorada de alvíssaras e rocamboles silvestres.
– Sim? – disse o Rei da Cizânia, mastigando uma véspera e cuspindo os cedilhas na mão de um limiar.
É um recurso genial e que curiosamente está assentado em um paradoxo: ambas as crônicas são uma brincadeira de pega-pega entre a inteligência e a ignorância (não no sentido pejorativo radical, e sim no sentido de algo que se ignora, tão somente). Verissimo, com seu domínio magnífico do idioma, as reposiciona em contextos em que, seja pela sua conformação gráfica seja pela sua estrutura sonora, a palavra desperta associações quase infantis, recuperando aquele sentido de maravilhamento que muitas crianças sentem diante de uma palavra nova cujo som parece se encaixar melhor em outra definição.
Por coincidência, aliás, lendo este mês o novo livro de Natália Borges Polesso, Condições ideais para navegação de iniciantes, topei com um detalhe semelhante em um dos contos do volume: Tatuilha, que começa com um encontro de três gerações numa tarde na praia: uma criança, seu pai e seu avô. O pai, Lilo, passou praticamente toda a vida sem contato com o seu pai, o homem mais velho – por questões que não vou entregar, mas estão relacionadas ao fato de Lilo ser o único dos três a ser referido pelo nome durante a narrativa. Na viagem, espécie de reconexão de um vínculo familiar possível, a certo momento a criança ouve equivocadamente que os pequeninos crustáceos que fogem quando se revolve a areia da praia se chamam Tatuilhas, um termo que considera perfeito – a narrativa é elíptica nesse ponto, mas subentendendo que a criança vê aqueles bichos como pequenos tatus em formato de ilha. O aprendizado da palavra correta, nesse caso, após uma correção feita pelo pai, não vem seguido do fascínio:
“Uma decepção se estampou em seu rosto pequenino. Era melhor se fosse tatuilhas. Esse lugar só tem nomes estranhos, seria bem melhor do outro jeito.”
Em outro exemplo que me ocorreu agora, anda circulando muito nas redes sociais um “corte”, como se diz hoje, de uma entrevista dada sei lá quando pelo lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda, um dos “homens-dicionário” por excelência do Brasil, no qual ele comenta o quanto a palavra “libélula” parece ela própria ser um signo perfeito da coisa que define, por ser uma palavra que, com seus “lll” leves, dança na boca e flutua no ar como libélula ela própria.
Filiando-me eu próprio a essa longa e produtiva tradição, decidi nesta semana coletar algumas dessas palavras que sempre me deram, pela sua simples morfologia, a impressão de quererem dizer outra coisa. Apresento-vos, meus queridos sete leitores, meu dicionário informal das “disparecências”, palavra que eu mesmo inventei usando engavetando “díspar”, um sinônimo chique pra “diferente”, com “aparências” – e na expectativa de que o resultado final lembrasse um pouco também “disparate”.
AXILA – Sempre me pareceu um termo matemático – geométrico, melhor dizendo. Eu não acharia estranho ler em um livro-texto qualquer “obtém-se a razão da axila multiplicando-se a hipotenusa pela área média dos catetos”.
FLAMBOYANT – Consigo traçar o momento em que ouvi pela primeira vez essa palavra, nos anos 1990, ouvindo Alceu Valença cantar uma música em algum programa de TV: “Lembro um flamboyant vermelho / No desmantelo da tarde”. Sei lá se por a palavra iniciar com F, mas para mim, imediatamente, Flamboyant se encaixava muito bem para uma variação de cores mais vivas e escandalosas de um Flamingo cor-de-rosa. Não me pergunte por que eu, na época, sabia o que era um flamingo, mas não o que era um flamboyant. Culpa da televisão, imagino.
GERGELIM – Gosto muito de gergelim, adoro bolachas de gergelim, mas isso nunca me impediu de ouvir a palavra pensando em algum instrumento rudimentar de corda vinculado a alguma cultura folclórica remota, talvez até de ressonâncias faulknerianas. “Na distância, ouvia-se o som agudo e denso de um gergelim de sete cordas em um lamento melancólico”.
JUNÍPERO – Palavra que eu só tinha encontrado antes em romances traduzidos da literatura árabe, meio que virou onipresente depois que todo mundo assistiu e gostou de um episódio da série Black Mirror chamado São Junípero (aliás, saibam vocês que esse não é um nome inventado, é um santo católico real, uma espécie de José de Anchieta da Califórnia no século XVIII). Junípero é um nome chique para o cedro, mas pra mim sempre soou mais cara como refrigerante de limão: “Beba Junípero: o carisma que refresca”.
MACADÂMIA – Demorei a saber o que era macadâmia e não tenho certeza até hoje de que entendi direito o que é, só sei que seu nome aparece em xampus e sabonetes que minha companheira compra às vezes. Pois, para mim, Macadâmia sempre soou como nome de cafetina em algum puteiro antigo da Ilhéus de Jorge Amado. Algo como “dali foi à casa de Macadâmia, figura tradicional de Ilhéus, célebre dona de bordel, maternal e de toda confiança”.
MAFAGAFOS – Como a maioria de vocês, ouvi desde cedo a expressão “Num ninho de mafagafos, seis mafagafinhos há”. E eu sei também que mafagafo não é uma palavra para nada especialmente concreto, é um termo trava-língua inventado com o único propósito de embaralhar, com suas muitas sílabas, a tarefa de quem está tentando dizer a frase em voz alta. Mas para vocês aí, o que a palavra evoca? Uma ave? Um mamífero? Para mim, o mafagafo sempre foi uma variação da corruíra. Se nanica ou não, perguntem pro Dalton Trevisan.
RODODENDRO – Esta planta ornamental não é lá muito comum ou super conhecida no Brasil, mas é talvez a maior encarnação, nos Estados Unidos, de um certo ethos burguês de jardinagem e paisagismo. O que talvez explique por que aparentemente um em cada cinco romances publicados nos EUA nas últimas décadas tem em algum lugar um arbusto de rododendros na frente de alguma casa de subúrbio. Para mim, no entanto, “rododendro” parece o nome de alguma engrenagem particularmente intrincada de motor, algum tipo de engrenagem com dentes rotundos, peça central de algum maquinário gigantesco com ares de pesadelo steampunk. Aliás, numa nota paralela, me dou conta de que um dicionário como este só existe devido à minha monumental ignorância da biologia e da botânica, já que foram recorrentes aqui nomes de árvores e plantas.
ROMBOEDRO – Acho que nunca ouvi ninguém usar esta palavra fora de uma aula de matemática – foi onde ouvi, aliás, e na época o livro-texto no qual estudei oferecia a seguinte definição: “Sólido hexaédrico que tem rombos por faces”. E desde então nunca mais consegui pensar nessa palavra sem imaginar algum tipo mutante de queijo suíço no qual temos, em cada lado, em vez de pequenos buracos, rombos homéricos, a versão queijo de passagens de viaduto. Claro, isso levaria o “paradoxo do queijo-suíço” a dimensões insustentáveis, porque ninguém pagaria por um queijo que é só uma armação de casca com um buraco enorme de cada lado… Ou até pagaria, rico joga dinheiro fora em coisa ainda mais estúpida. Arbustos de rododendros, por exemplo.
SUPINO – Cada vez mais presente por toda parte com a proliferação da multidão maromba contemporânea, essa palavra pra mim sempre me pareceu mais adequada a um adjetivo informal ou a uma gíria de aprovação (de preferência uma gíria de maconheiro, já que consigo ouvir nitidamente na cabeça alguém extremamente chapado dizendo: “Baita, lance, cara. Supino!”
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Foto da Capa: Reprodução do YouTube